Impactos da Lei n. 13.103/2015 sobre a proteção jurídica ao motorista profissional

AutorPaulo Douglas Almeida de Moraes
Páginas166-194

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“Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder” (Carlos Drummond de Andrade)

Capítulo I Notas introdutórias

O Direito, como ciência social que é, experimenta momentos nos quais seus fundamentos e sua finalidade última são postos à prova.

A despeito do Direito servir historicamente à pacificação dos conflitos sociais por meio do estabelecimento de regras abstratas previamente estabelecidas, hodiernamente ganha relevo o seu caráter civilizatório, viés sob o qual ele se apresenta com uma missão muito mais ousada — a missão não de meramente conformar a sociedade, mas, sim, de transformá-la e de torná-la mais justa e solidária. É esta a literalidade da carta constitucional de 1988, norma ápice do sistema jurídico interno, verbis:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I — construir uma sociedade l ivre, justa e solidária;

II — garantir o desenvolvimento nacional;

III — erradicar a pobreza e a mar ginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Recentemente, porém, sobretudo o direito do trabalho vem sofrendo sucessivos ataques que colocam à prova a capacidade do Direito prosseguir na sua trajetória de garantia da dignidade humana e de elevação do patamar civilizatório da sociedade.

Basta ver as recentes tentativas, por pressão do setor industrial, de cancelamento da Norma Regulamentadora n. 12 (que trata dos requisitos para fabricação de máquinas e equipamentos) ou, em razão das imposições da bancada ruralista no Congresso, da iminente reformulação do conceito de trabalho análogo ao de escravo para excluir a submissão a jornadas exaustivas e condições degradantes como elementares alternativas do tipo penal hoje hospedado no art. 149 do código penal. Mais contundente ainda é a fortíssima pressão para que a terceirização passe a ser empregada de forma generalizada, atingindo até mesmo as atividades finalísticas da empresa.

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Quando não se podia imaginar um quadro mais adverso, sobreveio a proposta mais desconcertante para todo o mundo do trabalho: a prepronderância do negociado sobre o legislado.

Tal proposta, que decepa o caráter cogente do direito do trabalho, mesmo antes de ser convertida em lei, conta com o respaldo jurisprudencial da mais elevada corte de justiça brasileira.

O Supremo Tribunal Federal, guardião último da Constituição da República, no bojo do Recurso Extraordinário n. 895.759, conferiu validade a instrumento coletivo que suprimiu o pagamento da jornada in itinere, direito este que, albergado no art. 58, § 2º da CLT, gozaria de indisponibilidade absoluta por se apresentar como corolário do princípio do valor social do trabalho, do direito constitucional à saúde e, por evidente, do direito à limitação de jornada de trabalho a parâmetros razoáveis.

As ameaças ao patamar mínimo de proteção dos trabalhadores em geral se tornou uma realidade para os motoristas profissionais brasileiros com a recente edição da Lei n. 13.103/2015, a qual promoveu um flagrante retrocesso para com a regulamentação da atividade desses profissionais, antes dada pela Lei n. 12.619/2012, implementando em grande medida a proposta do “negociado sobre o legislado”, na medida em que a nova lei confere expressivo prestígio à autonomia coletiva da vontade dos sindicatos.

A breve, porém conturbada história da Lei n. 12.619/2012 nos remete ao embate doutrinário outrora travado entre Ferdinand Lassalle e Konrad Hesse, no qual se discutia a magnitude e caráter determinístico dos chamados fatores reais de poder, seja sobre a produção legislativa ou mesmo sobre a aplicação da norma posta.

Ferdinand Lassalle, autor da célebre obra Que é uma Constituição?1, afirma que a Constituição de um país é, em síntese, a soma dos fatores reais do poder que regem esse país, gizando que:

Reúnem-se os fatores reais do poder, dá-se-lhes expressão escrita e, a partir desse momento, não são simples fatores reais do poder, mas verdadeiro direito. Quem contra eles atentar viola a lei e, por conseguinte, é punido. Conhecemos ainda o processo utilizado para converter tais escritos em fatores reais do poder, transformando-se dessa forma em fatores jurídicos.

Lassalleensina, pois, que a “Constituição real” é aquela decorrente da síntese dos interesses dos fatores reais de poder, enquanto o texto constitucional seria tão somente uma “folha de papel”.

Konrad Hesse, por seu turno, ex-presidente da Corte Constitucional Alemã e autor da clássica obra A força normativa da Constituição2, contrapõe-se ao escólio de Lassalle sustentando que a Constituição não é e não deve ser um subproduto mecanicamente derivado das relações de poder dominantes, ou seja, sua força normativa não deriva unicamente de uma adaptação à realidade, mas, antes, de uma vontade de constituição. Na concepção de Hesse, a Constituição seria, em si, um fator real de poder.

A problemática sob exame se amolda com perfeição ao debate doutrinário travado entre Lassalle e Hesse, na medida em que o agronegócio e a indústria representam importantes fatores reais de poder, os quais empreenderam todo seu poder político para o fim de moldar o Direito à realidade, de modo a atender seus interesses econômicos.

A açodada revisão da Lei n. 12.619/2012, levada a efeito com flagrante violência a garantias constitucionais pétreas leva, nesta quadra da história, a admitir que Lassalle e Drummond tinham mesmo razão — a Constituição não passa de uma folha de papel e o povo é mesmo tolo.

Todavia, tal conclusão, trágica para a sociedade, seria igualmente precipitada, uma vez que o sistema jurídico dispõe de ferramentas de autodepuração capazes de expurgar do ordenamento

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jurídico normas que não se coadunam com o projeto eminentemente social e igualitário albergado pela Constituição. A história descortinará qual é, afinal, a verdadeira Constituição.

Sob um prisma de ordem prática, deve ser observado que, diversamente do que sustentavam os setores que se sentiram ameaçados pela elevação do custo do frete rodoviário, a Lei n. 12.619/2012, no seu curto período de vigência, provou ser plenamente eficaz não apenas para o resguardo da dignidade do motorista profissional, como também para proporcionar um trânsito seguro para todos.

A análise dos dados estatísticos da Polícia Rodoviária Federal revela que a Lei n. 12.619/2012 promoveu significativa redução na participação relativa dos acidentes rodoviários envolvendo caminhões e ônibus. Traduzida em números, essa redução relativa, no período analisado de 2009 a 2014, resultou na prevenção de 29.257 acidentes, 15.790 pessoas deixaram de se ferir e, o mais importante, mais de 2.758 pessoas deixaram de morrer nas rodovias em acidentes envolvendo caminhões e ônibus.

A reformulação da regulamentação da profissão do motorista, sob a falsa premissa de que a infraestrutura nas estradas não permitiria o cumprimento da Lei n. 12.619/2012, contou com um objetivo muito claro: resgatar e legitimar o modelo de transporte rodoviário implementado no Brasil até o advento da, acertadamente chamada, “lei do descanso”.

Em que pesem essas ponderações iniciais de cunho meta jurídico, as quais pretendem tão somente situar o leitor quanto ao contexto no qual se produziu a norma a ser examinada, o presente estudo visa, sem nenhuma pretensão de definitividade, expor tecnicamente a subversão operada pela nova Lei n. 13.103/2015 quanto ao caráter protetivo ao motorista profissional e à sociedade implementado pela Lei n. 12.619/2012, apontando fundamentadamente as violações aos princípios e normas constitucionais, bem como aos valores que informam o direito do trabalho e o estado democrático de direito.

Capítulo II A destruição dos pilares de proteção ao motorista

Visando garantir segurança viária à sociedade e dignidade ao motorista profissional, a lei do descanso foi edificada sobre três pilares: o controle da jornada de trabalho, a restrição ao pagamento por comissão e a garantia de remuneração digna ao profissional.

A Lei n. 13.103/2015, em meio a outros retrocessos nocivos ao interesse da sociedade, subverteu o tratamento dado exatamente a...

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