A Imparcialidade para um Justo Processo Trabalhista

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas221-242

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Algumas questões relevantes merecem ser superadas para que o processo do trabalho atenda à garantia de um juiz imparcial e, assim, seja considerado justo. Neste contexto, os pontos a serem refletidos dizem respeito (i) à questão da desigualdade de contendores e ao protecionismo do processo trabalhista; (ii) aos limites dos poderes do juiz trabalhista e possíveis ameaças de sua atuação à garantia de imparcialidade do julgador; (iii) às hipóteses de suspeição e impedimento do juiz trabalhista; (iv) ao eventual rejulgamento da causa pelo mesmo magistrado e as implicações sobre sua imparcialidade; (v) ao contato do juiz com a prova ilícita e sua “contaminação psicológica”727. Todos estes cinco tópicos serão tratados sob a perspectiva da proteção em salvaguarda da garantia da imparcialidade jurisdicional.

2.1. Questão da desigualdade de contendores e o protecionismo
2.1.1. A evolução da compreensão da igualdade no direito processual

O método dialético desenvolvido no processo e na condução do órgão jurisdicional a uma posição suprapartes fortaleceu a figura do juiz mero espectador mudo, inerte, nada além de um observador no confronto entre os litigantes, os quais seriam os verdadeiros domini litis728.

Esta postura de juiz externo ao processo — e quiçá ao mundo — teve campo fértil no Estado de Direito, esculpido pelas mãos burguesas, calcado a partir de concepção eminentemente individualista. Focado no indivíduo-substantivo, abstraiu o Estado Liberal de qualquer consideração de ordem pessoal acerca dos homens, imprimindo conotação estritamente formalista ao princípio isonômico729.

A Lei, geral e abstrata, incidia indistintamente sobre indivíduos materialmente díspares. O conteúdo normativo, pretensamente igualitário, justamente por ignorar as desigualdades sociais, econômicas e culturais verificadas entre os homens, era incapaz de satisfazer os reclamos, sobretudo dos trabalhadores, pela implementação de sociedade mais justa e solidária. As normas jurídicas, postas aprioristicamente, não possuíam destinação específica730.

A presunção, liberal por excelência, era a de que as normas, justamente por seu caráter de generalidade e abstração,

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recaía indistintamente sobre todas as pessoas, promovendo, por conseguinte, de plano, a igualdade. Prescindia-se, pois, de qualquer atuação do Estado-poder para a promoção da igualdade, a qual se efetivaria simplesmente por um juiz distante e sem vida. Assim, a atuação do magistrado na condução do processo estava restrita a reproduzir, a partir de simples processo de subsunção, o conteúdo normativo ao caso concreto. O juiz, como sujeito da relação jurídica processual representativa do Estado, deveria manter-se afastado, isolado das partes, sendo-lhe absolutamente defeso movimentar o processo de oficio, sob pena de se violar a autonomia da vontade. Sob sua jurisdição, litigavam homens presumidamente iguais, pelo que a atuação espontânea do magistrado em favor de um desequilibraria, prejudicialmente, a relação processual731.

A atividade jurisdicional não poderia, em hipótese alguma, ser contaminada pelas influências externas, de caráter sociológico e humanístico. A sentença deveria concretizar o esquema normativo hipotético, subsumindo ao caso concreto (premissa menor) a regra jurídica aplicável (premissa maior). Supunha-se conter a Lei a solução para todas as questões que eram submetidas à apreciação do magistrado, o qual, sustentava-se, deveria julgar com neutralidade, o que, em outros termos, significava julgar despido de sensibilidade. Alheio, portanto, à realidade e à desigualdade social732.

Todavia, a intelecção restritiva do preceito igualitário à dimensão puramente formal, compreendida como a igualdade perante a Lei, passa a ser criticada, movimento que culmina com a conscientização de sua insuficiência para a concretização do ideal de justiça e dignidade humana. A brusca inversão da compreensão do conceito isonômico, iniciada com o reconhecimento da existência de desigualdades entre os homens, ampliou enormemente o rol de incumbências do Estado, que teve seu papel social profundamente remodelado. De ente alheio ao cidadão, assume para si o desiderato fundamental de promover a realização plena dos valores humanos733.

Procedeu-se, então, à reconstrução do conceito de igualdade. A desconsideração dos predicados atinentes a cada uma das partes da demanda constituía-se em obstáculo à efetividade dos direitos sociais e à consequente concreção do ideal de justiça.

Nesta concepção, a despeito dos objetivos políticos, o processo do trabalho aparentemente foi erigido a partir da presunção de que o empregado seria a parte “mais fraca” da relação jurídica adjetiva, devendo, pois, receber do ordenamento jurídico, tratamento diferenciado. Logo, caberia ao juiz lançar mão dos artifícios processuais promotores da situação de equilíbrio entre contendores díspares. O processo torna-se instrumento ético-jurídico de superação das desigualdades, na exata proporção em que logra efetivar os direitos fundamentais do homem.

2.1.2. Igualdade no Ordenamento Brasileiro

O constituinte originário, já no preâmbulo da Constituição734, erigiu a igualdade como valor a ser perseguido pelo Estado Democrático de Direito. Em outros termos, convolou a igualdade em princípio constitucional informador do próprio ordenamento jurídico brasileiro.

Mais adiante, no art. 5º da Carta Política Fundamental735, conferiu à isonomia o status jurídico de direito individual, sepultando de uma vez por todas qualquer possível discussão acerca da natureza jurídica da igualdade e de seu, hoje, irrefutável caráter normativo.

Assim, o princípio da isonomia traduz-se em direito público subjetivo fundamental. Os desdobramentos do preceito ao longo da Constituição736 reafirmam seu caráter cogente

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e imperativo e conferem maior densidade à fluidez e subjetividade impregnadas no conceito igualitário. Abandona-se, pois, a visão estritamente programática da norma isonômica, buscando-se efetivá-la no plano prático.

Tal qual ocorre com o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade dele derivado também se espalha nos diversos ramos de atuação estatal como garantia dos cidadãos. Em âmbito executivo, o postulado isonômico ensejou a confecção de políticas públicas discriminatórias positivas — as denominadas affirmative actions, voltadas a efetivar, in concretu, os direitos fundamentais, em especial, les droit à, os quais abrangem direitos sociais737 (como moradia, saúde738, educação739), direitos econômicos (direitos trabalhistas740, livre-concorrência etc.) e direitos culturais741 (direito ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e artístico).

No plano legislativo, por sua vez, passou o legislador a produzir normas setoriais, voltadas à proteção de homens, tidos, em certas relações jurídicas, como a parte hipossuficiente742.

Em âmbito internacional, à promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948, seguiu-se a confecção de novas e complementares Declarações, todas com detalhamentos e especificidades daquela, destinadas a tutelar os direitos e liberdades de sujeitos concretos, pontuais do homem-adjetivo. Como exemplos, pode-se citar a Declaração dos Direitos da Criança (1959); a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1952); o Pacto sobre os direitos econômicos, sociais e culturais e o Pacto sobre os direitos civis e políticos (1966). Todos documentos complementares ao Documento-gênero, à matriz original, isto é, espécies da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão743.

2.1.3. Igualdade no Processo

Ao perseguir, por meio da sentença, a materialização da igualdade exteriormente, no mundo fático, não há dúvidas de que a própria relação processual deve propiciar aos contendores igualdade de condições e paridade de armas.

Isto porque a sentença, decisão capaz de produzir efeitos e alterações externamente, reproduz, em grande medida, o ocorrido durante o desenrolar processual. De uma relação

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processual notadamente desigual dificilmente resultará uma sentença justa. Ademais, a isonomia é dever imposto ao magistrado pelo próprio Código Processual Brasileiro744.

Neste contexto, ganha relevo a paridade de armas entre as partes processuais. Este equilíbrio só pode ser proporcionado por um juiz que abandone sua postura letárgica diante do processo e atue de forma a suprir eventuais desigualdades. Não é compatível com uma Carta Constitucional que elege como postulados fundamentais a igualdade, a solidariedade e a justiça, o juiz inerte diante de uma deficiência postulatória capaz de alterar o resultado do processo.

Assim é que, com o alvorecer do Estado Democrático de Direito imprimiu-se, sob a perspectiva da igualdade material, nova conotação aos princípios da imparcialidade, inércia e demanda, permitindo-se, inclusive, ao magistrado produzir, sem qualquer provocação prévia, conjunto probatório que entenda necessário à justa resolução da controvérsia.

2.1.4. A imparcialidade e a promoção da isonomia

Diante de toda a construção apresentada, bem como da evolução da compreensão do conceito...

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