Imperativismos do século XIX: Savigny, Jhering, Thon e a allgemeine rechtslehre

AutorPierluigi Chiassoni
Páginas251-319
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Capítulo III
IMPERATIVISMOS DO SÉCULO XIX:
Savigny, Jhering, Thon e a allgemeine
Rechtslehre
“Agora, o absoluto critério distintivo do direito
é a coerção exercitada pelo estado no curso da
execução: uma norma jurídica sem coerção
jurídica é autocontraditória, é um fogo que não
queima, uma luz que não resplandece”.
Rudolf von Jhering
Sumário: 1. O modelo germânico de filosofia do direito positivo. 2. A
filosofia do direito positivo de Friedrich Karl von Savigny. 2.1 Natureza
do direito. 2.2 Fontes do direito. 2.3 À margem da filosofia de Savigny.
3. Meditações metadisciplinares: Adolf Merkel e o estatuto da allgemeine
Rechtslehre. 4. Thon vs. Jhering, ou do imperativismo sem sanção. 5.
Caráter social do direito. 6. Do direito estatal em particular. 7.
Normatividade do direito. 7.1 O Dilema de Thon. 8. Imperatividade do
direito. 8.1 Imperativos e discurso das fontes. 8.2 Variedade de imperativos.
8.2.1 “Normas nuas” e “normas dotadas de consequências jurídicas”.
8.2.2 Imperativos independentes e não independentes. 8.3 Imperativos
e outras normas jurídicas. 9. Imperativismo e realidade do direito.
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PIERLUIGI CHIASSONI
1. O MODELO GERMÂNICO DE FILOSOFIA DO DIREITO
POSITIVO
O modelo germânico de filosofia do direito positivo caracteriza-se
– no plano metafilosófico e, particularmente, no que tange ao método
da reflexão sobre o jurídico –, por uma combinação de historicismo e
naturalismo.
O historicismo influi na perspectiva dos filósofos alemães do direi-
to, sugerindo-lhes assumir como verdade irrefutável, concernente ao
objeto de suas pesquisas, a simples e, em retrospectiva, banal, ideia da
historicidade do direito.272 Esta ideia que identifica o que poderia chamar-
se de historicismo ontológico (o direito é um fenômeno histórico) é acom-
panhada, habitualmente, do historicismo epistemológico (a pesquisa sobre o
direito deve ser, então, uma indagação historiográfica, genealógica, que
leve em conta a historicidade do fenômeno indagado). O historicismo
ontológico e epistemológico, por outro lado, também pode ser acom-
panhado – e em algumas figuras eminentes da filosofia jurídica alemã do
século XIX, como veremos, é acompanhado –, de posições do histori-
cismo ideológico, em essência, antilegalista e antijusnaturalista. Segundo uma
linha de raciocínio de seguinte teor: o direito é um fenômeno histórico,
social, popular, estatal, espelho de sentimentos e circunstâncias mutáveis;
é, portanto, mutável em si mesmo, vital, orgânico, dotado de uma rique-
za, peculiaridade, mobilidade de conteúdos que mal se prestam a ser en-
cerrados nas páginas definitivas do direito legislativo, apreciado pelo ra-
cionalismo iluminista (antilegalismo); tem, além disso, um valor intrínseco
que deve ser afirmado contra a pretendida superioridade axiológica de um
imaginário direito natural abstrato, universal e eterno (antijusnaturalismo).
O naturalismo influencia na determinação dos critérios de cienti-
ficidade das pesquisas jurídicas. O cientista natural procede por ascensão
272 Com a denominação de historicismo, quer-se indicar, sobretudo, a revolução
metodológica operada nas ciências morais do princípio do século XIX, por meio da
qual essas ciências, abandonado o método dogmático-cartesiano, buscaram seu
fundamento, antes que em postulados racionais, na realidade histórica criticamente
verificada. SOLARI, Gioele. Filosofia del diritto privato: storicismo e diritto privato,
1915-1916. vol. II. Torino: Giappichelli, 1940, p. 8.
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CAPÍTULO III – IMPERATIVISMOS DO SÉCULO XIX: SAVIGNY...
teórica, passando desde a observação, coleta sistemática de dados e de
informações, e descrição de dados de experiência na elaboração de apa-
ratos conceituais, tipologias, leis causais, etc., que aqueles dados de ex-
periência capturam, explicam, desenvolvem. O cientista do direito,
por estar atento ao conteúdo de um sistema positivo particular, ou às
formas e/ou às estruturas do direito em geral, deve proceder, na me-
dida do possível, analogicamente, rechaçando as falsas filosofias a
priori, metafísicas, abstrusas, bem representadas por Georg W. F. Hegel
(1770-1831) e seus seguidores, e operando, ao contrário, conforme a
expressão imaginativa de Rudolf von Jhering (1818-1892), de “natu-
ralista filosofante”.273
No plano filosófico-teórico, o modelo germânico caracteriza-se
pela adesão ao imperativismo, à ideia do caráter sistemático do direito,
ao cognitivismo interpretativo, à ideia da genuína cientificidade da
scientia iuris, à tese da moralidade contingente do direito, para mencionar
as principais; entretanto, com diferenças notáveis, entre os diversos au-
tores, no modo de entendê-las.
O modelo germânico é, e não poderia ser diferente, uma abstração.
Neste capítulo, proponho-me a individualizar, e a explicar alguns dos
fios que compõem essa trama, detalhando as posições imputáveis a qua-
tro filósofos do direito: Savigny, Jhering (tratado bastante brevemente,
cf. o capítulo IV, § 5º), Merkel e Thon.
Ao contrário de Bentham, Austin e de seus seguidores no século
XX, os jusfilósofos alemães não foram, ao menos não consciente e pro-
gramaticamente, utopistas da razão analítica. Porém, suas ideias e seus
modos maduros e evoluídos de proceder constituem, por si só, uma
273 Rudolf von Jhering, no “Prefácio do autor” na primeira edição de Der Zweck im
Recht (O fim no direito), escrito em 1877, recorda “Os limites dentro dos quais a filosofia
se encontrava encerrada nos tempos de Hegel, o édito decretado contra aquele que, sem
ter passado por aquela escola, ousava pronunciar palavras sobre questões filosóficas; o soberano
desprezo com o qual o filósofo da escola hegeliana mirava o homem da ciência positiva”
para concluir que tudo isso “felizmente cedeu a vez a outra ordem de ideias. E, com certeza,
sem prejuízo para a filosofia” (Der Zweck im Recht (1878; ult. ed. 1884) Tradução estabelecida
em italiano como Lo scopo nel diritto. Torino: Einaudi, 1972, p. 7).

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