Inatualidade de Dionísio

AutorFurio Jesi
Páginas59-75
doi:10.5007/1984-784X.2014v14n22p59
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INATUALIDADE DE DIONÍSIO
Furio Jesi
1. Sobre o portal do templo de Vênus, imaginado por Angelo Poliziano,
encontram-se, nas Estâncias, duas fileiras de baixos-relevos esculpidos por
Vulcano; na primeira fileira são celebrados os eventos que precederam e
acompanharam a epifania primordial de Vênus; na segunda aparecem dez
exemplos míticos da potência da deusa. O grupo, composto pelos sexto, sé-
timo e oitavo relevos, representa Ariadne abandonada e a chegada de Dionísio
com seu cortejo.
Esse tema não é único no Quatrocentos florentino. A Canzona di Bacco,
composta por Magnifico Lorenzo, escande o encontro triunfal de Ariadne com
o cortejo dionisíaco; um entalhe baseado em um desenho de Botticelli e um
medalhão no pátio do Palácio Medici, modelado sob o exemplo de uma antiga
gema, dele são os equivalentes iconográficos. Na evocação de Poliziano, o
encontro entre Dionísio e Ariadne é acompanhado de outras imagens míticas
nas quais a potência de Vênus se manifesta suscitadora de violência, seja
quando um deus (Júpiter, Netuno, Saturno, Apolo) aparece com o semblante
metamórfico ou no ato de sua ânsia amorosa, seja quando no relevo ao lado
desses dionisíacos figura o protótipo da copulação como rapto: o rapto de
Proserpina. Em toda a decoração do portal que principia com a imagem, de
primordial e cômica violência, da castração de Urano só as figuras de Ari-
adne e de Dionísio exemplificam a potência de Vênus em forma não apenas
serena, mas anunciadora de perenes serenidades futuras e de vitórias não
revogáveis. As próprias imagens de Júpiter como cisne ou chuva de ouro as
aparências assumidas pelo deus para unir-se a Leda e a Dânae aludem a
copulações quase furtivas, a epifanias do amante divino circunscritas pelo
“uma vez por todas” em vez de abertas ao futuro pelo “agora e para sempre”.
Inattualità di Dionisio.
In: Materiali mitologici. Mito e antropologia nella cultura mitteleuropea.
Org. Andrea Cavalletti. Torino: Einaudi, 2001, p. 121-140.
Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 14, n. 22, p. 59-75, 2014|
inatualidade de dionísio
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É possível objetar que o tempo do mito é imóvel e que, portanto, na esfera do
mito um instante vale a eternidade. Mas mesmo se o tempo do mito é efetiva-
mente imóvel, existe na percepção que dele se tem uma constante que defini-
mos “comprimento” em vez de “duração”: comprimento todo simultanea-
mente percebido, assim como é percebida cada fração sua, de forma a fazer
coincidir com o instante de quem percebe seja toda a realidade do tempo mí-
tico seja as parcelas deste. A realidade essencial de tal duração é intrínseca
não apenas à estrutura de um mitologema enquanto narrativa de eventos,
mas também ao mais íntimo valor de revelação assumido por ele. Antes, seria
preciso dizer que esse comprimento torna-se real quanto mais um mitolo-
gema adquire, em um determinado contexto religioso, valor de revelação e de
redenção. Nesse sentido, no âmbito do mito, o “uma vez por todas” leva o ho-
mem para mais próximo de deus, enquanto o “agora e para sempre” aproxima
o deus do homem.
Aqui jaz a raiz do valor triunfal e alegre do encontro de Ariadne com
Dionísio. As núpcias de Ariadne e Dionísio cobrem todo o comprimento do
tempo do mito, uma vez que Ariadne será a perene esposa do deus; o con-
fronto, a cópula de Zeus com Dânae, corresponde a uma só fração do tempo
mítico e é mais epifania de força do que revelação de socorro e de resgate. En-
tre Mabuse e Correggio, as figurações do Renascimento do ouro no ventre de
Dânae por um lado deixam espaço ao alegorismo emblemático e, por outro, à
pura realidade epifânica do mito, a qual envolve em tipos afrodisíacos o sem-
blante da amante de Zeus. Mas no encontro de Ariadne com Dionísio o Mag-
nifico Lorenzo vê não tanto um emblema e um simulacro, intimamente “re-
pousantes em si mesmos”, como escreve Bachofen, quanto um exemplo aber-
to ao futuro (e o futuro do mito é o homem), não apenas um emblema de
verdade, mas um explícito símbolo de redenção:
Estes são Baco e Ariadne,
Belos, e um pelo outro ardentes:
Porque o tempo foge e engana,
Sempre juntos estão contentes.
A antítese entre o terceiro e o quarto versos é reveladora. Ao tempo que
“foge” e “engana” portanto, ao tempo humano , contrapõe-se o “sem-
pre” do mito salvador.
No canto carnavalesco, todavia, não se poderia encontrar nem mesmo
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 14, n. 22, p. 59-75, 2014|

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