O incidente da desconsideração da personalidade jurídica do código de processo civil de 2015 no processo do trabalho

AutorTatiana Gonçalves Moreira
Páginas49-70

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O Código de Processo Civil de 2015 ao ser publicado inovou ao criar e regulamentar questões amplamente discutidas e aplicadas pela jurisprudência na prática forense. Dentre as inovações está a criação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica como instituto autônomo dotado de procedimentos pré-estabelecidos para a sua concessão.

A comissão de juristas designada a elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil ao rever a redação do art. 596, optou em seu correspondente, o art. 79512, pela manutenção da distinção entre patrimônio da sociedade e dos sócios, acrescentando, contudo, em seu §4º, a obrigatoriedade da abertura do incidente para só então aplicar a desconsideração.

No Capítulo IV do Título de Intervenção de Terceiros do NCPC, definiu-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e seus procedimentos. O processo comum passou a exigir, pela regra do art. 133 e seguintes, a abertura do incidente antes da retirada do véu da pessoa jurídica. Nota-se a preocupação do legislador em preservar os sócios de execuções direcionadas à sociedade. Não se trata aqui da proteção absoluta do sócio em detrimento do crédito do exequente, mas sim da distância segura entre patrimônio social e pessoal, preservando as relações contratuais existentes e a atividade empresarial.

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Neste sentido, a criação do incidente tem como objetivo analisar criteriosamente os fatos que envolvem a execução da pessoa jurídica, mediante procedimento específico, de modo a evitar tanto a execução arbitrária aos bens pessoais dos sócios, quanto as práticas fraudulentas de desvio de patrimônio social.

A lógica adotada pelo processo comum é no sentido de que não basta a insolvência da pessoa jurídica para a constrição dos bens pessoais de seu quadro societário, mas sim a obrigatoriedade de preenchimento de requisitos previstos no art. 50 do Código Civil, como desvio de finalidade ou confusão patrimonial. O mesmo se aplica a desconsideração inversa.

Não obstante o avanço pretendido no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação do CPC de 2015, a mesma lógica de raciocínio não se aplica ao processo do trabalho, o que nos remete a reflexão exaustiva sobre o tema.

Isso porque para a justiça laboral a simples insolvência da pessoa jurídica já era o suficiente para que o juiz ex-officio, por meio de decisão fundamentada, deter-minasse a desconsideração da personalidade jurídica e o bloqueio de quantos bens fosse necessário para a satisfação do crédito exequendo. Destaca-se que mesmo na execução diferida adotada pelo processo do trabalho, é garantido ao sócio executado o direito ao contraditório e a ampla defesa, assim como o direito de ordem.

Esboçada essa distinção hermenêutica entre o processo comum e o processo do trabalho, muito se questionou durante período de vacatio legis do NCPC, e ainda se questiona sobre a aplicação ou não subsidiária e supletiva do incidente à Justiça do Trabalho. Muitos doutrinadores passaram a discorrer sobre o tema no intuito de ventilar as questões e consequências advindas do instituto como previsto no art. 133 e seguintes.

Sob esta perspectiva, defende o magistrado trabalhista Ben-Hur Silveira Claus (CLAUS, 2015, p. 87) que não se trata de questionar a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica à execução trabalhista, uma vez que “[...] pacífica a utilidade dessa técnica jurídica à efetividade da jurisdição trabalhista. Na verdade, mais do que providência, a adoção dessa técnica jurídica é medida indispensável à satisfação de inúmeras execuções nas quais se revela a insuficiência do patrimônio da sociedade executada”.

O grande questionamento ao que o magistrado faz menção é quanto a aplicabilidade do novo procedimento instituído pelo CPC de 2015 à execução trabalhista. É a discussão sobre a “aplicação do itinerário procedimental (CLAUS, 2015. p. 88)” proposto pelo novo diploma à execução no processo do trabalho, enquanto procedimento cível, especial e autônomo, isto é, a aplicação do instituto sem a observância das particularidades técnicas do processo do trabalho.

Ressalta ainda o magistrado que “[...] o critério científico da compatibilidade subsiste ao advento do novo CPC (CLAUS, 2015, p. 87)”, e que por esta razão tanto o processo comum quanto, em particular, o incidente da desconsideração da personalidade

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jurídica, devem ser submetidos rigorosamente à compatibilidade prevista nos arts. 769 e 889 da CLT.

O Tribunal Superior do Trabalho antevendo eventuais conflitos quanto à aplicação subsidiária do novo diploma legal às demandas trabalhistas, esclareceu através da Instrução Normativa n. 3913 de 15 de março de 2016, pontos nitidamente controvertidos, dentre eles o incidente da desconsideração.

O art. 6º da IN n. 39 foi incisivo ao determinar a aplicação dos arts. 133 à 137 do novo diploma ao processo do trabalho, não restando qualquer dúvida sobre o entendimento do TST quanto a matéria. O mesmo artigo, nos §1º e §2º, elucidou as particularidades cabíveis ao processo laboral no intuito de clarificar aos operadores do direito o procedimento a ser adotado nos casos de requerimento da desconsideração da personalidade jurídica.

Conforme abordado no capítulo anterior, muito se questiona não apenas sobre o incidente em si, mas também sobre as determinações explicitadas na IN n. 39 e a lógica adotada pela mesma para validar o instituto às demandas trabalhistas.

No capítulo a seguir convidamos os operadores do direito processual trabalhista a pensar e refletir sobre o tema a partir de grandes nomes da doutrina trabalhista brasileira. Desde já destacamos que não temos a pretensão de esgotar o tema, tampouco solucionar o conflito em definitivo, mas sim estimular a discussão para a melhor prática do bom direito.

Da exigência de iniciativa da parte

A primeira exigência a ser analisada referente ao incidente da desconsideração da personalidade jurídica, diz respeito à exigência de iniciativa da parte ou do Minis-tério Público quando lhe couber intervir no processo. Deixando à margem a discussão sobre a inconstitucionalidade da IN n. 39, aqui se discutirá apenas a aplicação do incidente tal como se apresenta pelo NCPC consubstanciado pela referida IN editada pelo TST.

Feita essa ressalva destaca-se que para a corrente majoritária dos doutrinadores trabalhistas a exigência de iniciativa da parte para a abertura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 133 do NCPC é, incompatível com o processo do trabalho.

Segundo o juiz do Trabalho da 4ª Região Ben-Hur Silveira Claus, ao exigir a iniciativa da parte, a norma legal afronta princípios do direito processual do trabalho

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praticados há mais de setenta anos e contraria o princípio do impulso oficial que é característico à execução trabalhista. (CLAUS, 2016, p. 88)

Em oposição ao processo civil, o processo do trabalho conta com o art. 878 caput da CLT que é expresso quanto à possibilidade da execução iniciada por impulso oficial, independente da manifestação da parte. O princípio do impulso oficial garante às causas trabalhistas a prestação da tutela jurisdicional de forma mais célere e eficaz do que o processo comum. Por sua vez, o art. 765 da CLT faculta ao juiz ampla liber-dade na direção do processo, bem como lhe garante a busca pelo andamento rápido das causas. Essa liberdade confere ao magistrado trabalhista a autonomia necessária para dar seguimento ao processo independente da inércia da parte.

Neste sentido, ainda para o jurista citado, “[...] a execução de ofício singulariza a processualística trabalhista brasileira desde seu surgimento, sob a inspiração dos princípios da indisponibilidade dos direitos do trabalho e da efetividade da jurisdição”. Nesse ponto, a especialidade sempre foi uma característica do subsistema processual trabalhista, assim como a autonomia conferida ao magistrado para impulsionar o processo ex offício. Esta peculiaridade sempre foi vista como um poder-dever do juiz mesmo antes da consagração de princípios constitucionais como o da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII). (CLAUS, 2016, p. 88)

O legislador ao conferir ao magistrado a autonomia de impulsionar o processo de ofício, buscou reduzir as desigualdades entre empregador e empregado criando a partir do princípio da proteção, vantagens jurídicas à parte hipossuficiente. A intenção era reequilibrar a relação entre os litigantes cujos fatores econômicos, sociais e culturais por si só já implicavam diretamente no acesso à justiça.

O trabalhador, à época da promulgação da CLT, visava receber as verbas trabalhistas a que tinha direito com rapidez, entretanto desconhecia o trâmite processual a que seria submetido. O empregador, mais familiarizado com essa logística procedimental se valia desse conhecimento para tirar vantagem e postergar ao máximo a satisfação do crédito exequendo. Submetiam o trabalhador por meio da utilização de recursos e manobras jurídicas, a uma verdadeira via crucis.

Conforme destacam Gabriela Neves Delgado e Renata Queiroz Dutra as sociedades empresariais perceberam com as sucessivas ações judiciais que, ao realizarem transações de direitos trabalhistas em juízo dispunham de mais tempo para efetuar o pagamento e por vezes ainda ganhavam um “desconto” devido à necessidade do empregado em receber seus créditos. (DELGADO e DUTRA, 2016, p. 530)

Foi justamente em função dessas distorções e desigualdades percebidas nas relações de trabalho que, o Estado foi chamado a desenvolver o papel de regulador dos conflitos judiciais para que se evitasse “a reprodução destrutiva do capital e a mercantilização do trabalho humano (DELGADO e DUTRA, 2016, p. 530)”.

E é exatamente neste sentido que a doutrina processual trabalhista majoritariamente...

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