A validade da cédula de produto rural independente de adiantamento financeiro. o atual posicionamento do STJ

AutorBeatriz Mesquita de Arruda Camargo Kestener - Thiago Soares Gerbasi
Páginas116-136

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I - Introdução

Neste breve artigo, pretende-se dar enfoque à discussão que ocorre atualmente em alguns Tribunais de Justiça Estaduais e no Superior Tribunal de Justiça, acerca da validade da Cédula de Produto Rural ("CPR") emitida sem adiantamento financeiro.

A CPR é um título de crédito largamente utilizado no direito brasileiro e no mercado agrícola com a função de opera-cionalizar a venda antecipada a preço fixo de produtos agrícolas.

Em que pese a existência da CPR financeira, emitida por produtores rurais em favor de instituições financeiras para financiamento de sua produção agrícola e obtenção de capital de giro, o enfoque deste estudo é a CPR emitida pelos produtores rurais, em favor das empresas beneficiado-ras de commodities ou tradings, representativas da obrigação de entrega da mercadoria, decorrente de contratos de compra e venda antecipada de commodities a preço fixo. A CPR é emitida no momento de assinatura do contrato, normalmente antes ou no início da safra, sem adiantamento pecuniário e nela são instituídas as garan-tias permitidas pela Lei (hipoteca, penhor e alienação fiduciária). A validade dessa espécie de CPR tem gerado controvérsias nos Tribunais.

A referida controvérsia judicial iniciou-se no final de 2004/início de 2005, e se estende até hoje, mas parece, finalmente, estar chegando ao seu fim.

Nos idos de 2003/2004, para se protegerem das oscilações naturais de preço de mercado de commodities, muitos produtores venderam sua produção de soja de forma antecipada, a preço fixo. A convenção já contemplava todos os custos de produção e lhes garantia razoável margem de lucro. Em abril de 2005, mês da colheita e entrega da mercadoria, a ocorrência de uma praga conhecida como "ferrugem asiática" acometeu algumas lavouras e gerou a consequente redução de oferta do produto no mercado que, aliado a outros fatores econômicos internos e externos, elevou o preço da commodity soja.

Com o momentâneo aumento dos preços da soja, na época da colheita, alguns produtores rurais decidiram tirar vantagem da situação, e desviaram a sua produção para o mercado àvista, obrigando as empresas beneficiadoras de commodities

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ou tradings com quem haviam esses produtores contratado, a ajuizarem medidas cautelares de sequestro/busca e apreensão da soja e ações de execução das CPRs correspondentes. Como defesa da prática (o desvio da soja prometida para venda a terceiros), os produtores rurais suscitaram em juízo a alegada nulidade da cártula, pela ausência de adiantamento financeiro ao produtor, com o que estaria descaracterizada, segundo eles, a sua finalidade de fomento à produção rural.

A questão foi bastante debatida nos Tribunais Estaduais, com diversas decisões nos dois sentidos, ora validando, ora invalidando a cártula, quando não houvesse adiantamento de parte do preço. Em dezembro de 2005, o Superior Tribunal de Justiça proferiu o primeiro acórdão de mérito, pelo qual declarava a nulidade da CPR, pela ausência de adiantamento financeiro. Porém, em recentíssima decisão, o Superior Tribunal de Justiça alterou seu posicionamento original, e enfim, declarou válida a cártula, seguindo as recentes decisões dos Tribunais Estaduais e a doutrina publicada sobre o assunto.

II -O histórico do posicionamento dos tribunais

O primeiro julgamento de mérito do Superior Tribunal de Justiça deu-se no bojo do Recurso Especial 722.130, relatado pelo I. Ministro Ari Parglender. Participaram do julgamento, os I. Ministros Carlos Alberto Menezes de Direito, Nancy Andrighi, Castro Filho e Humberto Gomes de Barros.

Na oportunidade, foi acolhida a argumentação dos produtores no sentido de que a ausência de adiantamento descaracterizaria a CPR como título que se presta ao fomento da agricultura. O fundamento da decisão estava na Exposição de Motivos da Lei n. 8.929, de 1994, que instituiu a CPR, cuja interpretação fora feita no sentido de que a pretensão do legislador era for-necer ao produtor rural "capital de giro necessário ao desenvolvimento de suas ativi-dades". Nesse sentido, a emissão de uma CPR sem o prévio pagamento, ou antecipação de parte do preço, não funcionaria como instrumento de crédito e, portanto, a cártula estaria desviada de sua finalidade e seria inválida. Observem-se trechos dos votos:

Voto do I. Ministro Ari Parglender

"3. A emissão da Cédula de Produto Rural, ao que se lê da Exposição de Motivos ao Projeto que resultou na Lei n. 8.929, de 1994, 'consubstancia promessa de entrega futura de produtos rurais', cujas finalidades foram assim explicitadas:

“‘Essa modalidade operacional, que hoje se formaliza através de complicados instrumentos contratuais, é a principal alternativa encontrada pelos produtores rurais para alavancar o capital de giro necessário ao desenvolvimento de suas ativida-des, especialmente no caso de produtos destinados à exportação, como a soja, por exemplo, em face do esgotamento paulatino das fontes tradicionais de crédito rural. Com a criação da CPR, portanto, o Governo estará colocando à disposição do mercado um instrumento padronizado e simples que proporcionará economia e segurança operacional.

'"(...).'

"A emissão de uma Cédula de Produto Rural sem o prévio pagamento, ou a antecipação de parte dele, não é usual nem funciona como instrumento de crédito -tendo no caso concreto, em que o título não circulou, a única serventia de dar ao beneficiário um meio executivo para cobrar a entrega da safra futura.

Nessa parte, o negócio foi desigual porque a emissão da Cédula de Produto Rural, desviada de sua finalidade típica, agravou a situação do emitente, ao invés de beneficiá-lo. Essa circunstância é sufi-

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ciente para a declaração da nulidade do título.

Voto do I. Ministro Carlos Alberto Menezes de Direito

"Quanto à questão da Cédula do Produtor Rural, realmente me parece que toda a estrutura montada foi no sentido de servir como um título de crédito em relação a uma operação de financiamento. Ora, em um contrato de safra futura não há operação de financiamento, de crédito. Na realidade, é um contrato que não tem nenhuma vinculação de natureza financeira específica, porque está ligado ao fornecimento, por parte do vendedor, de uma determinada quantidade de sacas de soja e ao pagamento, por parte do comprador, de um preço, que pode variar. E, realmente, se formos admitir a possibilidade da emissão de títulos de crédito dessa natureza, sem que esteja vinculada, necessariamente, a uma operação de crédito, desvirtuaremos a natureza do próprio título; não há nenhuma operação negocial que implique na emissão de título de crédito sem que exista, na base do negócio, uma operação financeira. No caso, aqui, na realidade, não existe, porque o contrato de safra futura, a meu ver, dispensa, pois a álea do negócio não transforma o crédito em débito, porque há o preço mínimo, e o prejuízo será decorrente da variação do valor da saca de soja.

Esse é um caso importante, não no que diz respeito ao contrato de safra futura, mas à Cédula do Produtor Rural, porque ainda não julgamos essa matéria.

Voto da I. Ministra Nancy Andrighi

"Com relação às Cédulas de Produto Rural emitidas como garantia para o contrato ora controvertido, o Min. Relator considerou-as inválidas sob o fundamento de que, se não houve qualquer adiantamento pela safra que era antecipadamente ven-dida, os fins visados pela Lei n. 8.929/1994 restariam frustrados. Transcrevendo parte da Exposição de Motivos dessa norma, menciona o Relator que a finalidade da lei seria a de constituir 'importante passo no sentido da modernização e da antecipação da atividade rural, na medida em que permite ao produtor planejar melhor seus empreendimentos, além de propiciar-lhe capital de giro e de protegê-lo contra o risco da queda de preços que normalmente ocorre na época da safra'.

"A emissão da Cédula sem o respectivo adiantamento do preço, portanto, de fato representaria o desvirtuamento do instituto. Sem o adiantamento da quantia pactuada, teríamos um título de crédito desvinculado de qualquer operação financeira, como bem observado pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Neste aspecto, portanto, também assiste razão ao Ministro Relator."

Paulatinamente, no entanto, os Tribunais passaram a alterar e a consolidar novo entendimento no sentido de reconhecer a validade da CPR a despeito do adiantamento de parte do preço, pois: (i) no que tange à forma, a CPR deve cumprir apenas os requisitos expressamente previstos no art. 3° da Lei n. 8.929/1994, no qual não há menção ao adiantamento financeiro (princípio legalidade); e (ii) no tocante ao mérito do negócio jurídico, a CPR, mesmo sem o adiantamento de preço, continua sendo um instrumento hábil para a circulação de riquezas e para a segurança jurídica das transações comerciais (entre as quais a fixação de preço certo e ajustado, protegido das variações de mercado) e contém todos elementos intrínsecos aos títulos de crédito, quais sejam, a autonomia, a independência, a cartularidade e a abstração.

Seguindo a orientação doutrinária, os Tribunais têm reconhecido que "a riqueza que a CPR representa é o poder de crédito que o contrato de compra e venda antecipada de 'commodities' firmado com uma

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empresa idônea gera perante terceiros. Isso gera riqueza, criação de capital".1

Nesse sentido, desde 2005, os Tribunais Estaduais têm proferido decisões que declaram, expressamente, a validade da CPR, a despeito de não ter havido adiantamento financeiro. Valem destaque: (i) os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nas apelações cíveis 7022025-8,99104072079-7e 99105019378-4; (ii) os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Paraná, nas apelações cíveis 350.906-8 e 351.289-6; (iii) o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, na apelação cível 3.810/2005; e (iv) os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de Goiás, nas...

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