Os indesejados como inimigos: a exclusão de seres humanos do status personae

AutorJesús-María Silva Sanchez
CargoCatedrático de Direito Penal pela Universidade Pompeu Fabra, Espanha
Páginas135-151

Traduzido por: Mário Ferreira Monte1

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1. Introdução
1.1. Inimigos e não-pessoas

Boa parte da discussão jurídico-penal da última década teve como ponto de partida duas distinções essenciais, cujo aparecimento no nosso âmbito se deve à obra de Jakobs. A primeira, de conteúdo político-criminal, é a que distingue entre um “Direito penal de cidadãos” e um “Direito penal de inimigos”2. A segunda, de conteúdo jusfilosófico e, portanto, dogmático, é a que distingue entre “pessoas” e “nãopessoas” para o Direito (penal)3. Uma e outra distinção não se sobrepõem; peloPage 136 contrário, em teoria seria possível a sua combinação, dando lugar a um “Direito penal de cidadãos para pessoas” e um “Direito (penal) de cidadãos para não pessoas”; e a um “Direito (penal) de inimigos para pessoas”, assim como de um “Direito (penal) de inimigos para não pessoas”.

A classificação anterior pode produzir alguma perplexidade. Assim, poderia parecer inconcebível a existência de um “Direito de cidadãos para não pessoas”; e de um “Direito de inimigos para pessoas”. Em meu juízo, o paradoxo procede da ambiguidade de que sofre a distinção entre pessoas e não-pessoas na proposta de Jakobs. Por um lado, nele se considera não-pessoa aquele sujeito que não defrauda expectativas normativas, pela simples razão de que não se lhe dirigem: por exemplo, o inimputável4. Por outro lado, contudo, considera-se não-pessoa aquele sujeito que certamente defrauda expectativas normativas, mas que, além disso, não oferece garantia cognitiva alguma de não voltar a fazê-lo no futuro: por exemplo, o imputável perigoso5. Vistas as coisas assim, o primeiro dos sujeitos seria não-pessoa para efeitos da não imputação de responsabilidade. O segundo, pelo contrário, seria nãopessoa para efeitos da desaplicação de certos princípios tuitivos, em particular, algumas garantias político-criminais materiais e processuais.

Contudo, o mais importante é que, na realidade, nenhuma das supostas “não pessoas” antes mencionadas é considerada, realmente, em termos absolutos, “nãopessoa” para o Direito. Isso vale, desde logo, para o caso do inimputável. Como se disse, o inimputável é reputado não-pessoa no sentido de que não se constrói como destinatário de obrigações jurídicas. Mas considera-se, obviamente, pessoa, no sentido de que as reacções fácticas (cognitivas) a que é submetido se enquadram com clareza nas garantias do Estado de Direito. Por isso dizia antes que existe um Direito (penal) de cidadãos para não-pessoas. Este seria o Direito das medidas de segurança para inimputáveis que, com variantes em uns ou outros ordenamentos, não pode afirmar-se que deixe de ser Direito de cidadãos. Além disso, ao inimputável considera-se pessoa no sentido de que se lhe aplicam, de modo absoluto, as normas jurídicas (e jurídico-penais) que protegem as pessoas.

Quanto ao caso do imputável perigoso, que se qualifique como “inimigo”, o que por certo resulta, como mínimo, um excesso verbal, em absoluto implica que se lhe negue o status de pessoa. É verdade que em algumas ocasiões Jakobs se terá referido ao “inimigo” como “não-pessoa”6. Mas, para além das palavras, nem a sua concepção nem nenhuma outra concepção teórica contemporânea de algo assim como um Direito penal dos inimigos trata o delinquente, seja da classe que for, como uma absoluta não-pessoa. No trato com ele não se prescinde, nem muito menos, de todas as garantias do Estado de Direito. Não se trata como a um animal perigoso. E isso tão-pouco sucede em nenhuma regulação legal que supostamente responda a tal modelo. Para além do nominalismo, nestes casos produz-se só – segundo se aponta repetidamente pelo próprio Jakobs – um adiantamento da intervenção, a não redução de pena em termos correspondentes e a limitação de garantias processuais. Quer dizer, trata-se de uma certa redução – maior ou menor – do status civitatis, mas não de uma exclusão do status personae. Pelo demais, aoPage 137 suposto inimigo – imputável perigoso – lhe alcança também de modo pleno a protecção que o Direito dispensa às pessoas frente a outros terceiros. A inimizade não é, pois, “absoluta”.

Em resumo: As supostas “não-pessoas” em que se centrou a discussão nos últimos anos, e em particular as “não-pessoas-inimigos”, são tratadas, em termos gerais, como pessoas. Ao menos, em dois sentidos: no sentido de que não se lhes exclui de modo absoluto – nem muito menos – das garantias do Estado de Direito; e no sentido de que lhes alcança de modo pleno, pese o seu suposto carácter de nãopessoas, a protecção que o Direito dispensa às pessoas.

1.2. A exclusão

A distinção entre inclusão e exclusão – desenvolvida no âmbito da teoria de sistemas – não se corresponde tão-pouco com as duas diferenciações anteriores. Vem-se considerando excluídos aqueles sujeitos que, pela sua própria situação desvantajosa no seio de uma sociedade, não recebem os benefícios do crescimento e o progresso económico desta7. A noção de exclusão nasceu, de facto, associada à marginalidade e à pobreza8. Por isso, cabem formas de exclusão que não implicam a consideração do excluído como inimigo, nem como “não-pessoa”; ainda que certamente reduzem drasticamente, no seu caso, a materialidade da condição de cidadão ou de pessoa entendida como “alter ego”. Ora bem, também está claro que a exclusão absoluta implica a negação da condição de pessoa do sujeito afectado9. No que segue, o termo “exclusão” utilizar-se-á neste sentido radical.

2. As verdadeiras não-pessoas do Direito penal moderno: os (absolutamente) excluídos

A discussão jurídico-penal sobre os inimigos e sobre as não-pessoas tem-se centrado pois, na realidade, em casos de redução do status civitatis de certos seres humanos, às quais, contudo, desde logo não se lhes nega o status personae em termos absolutos. Mas isso não significa que não exista um Direito penal de inimigos no sentido mais estrito da expressão. E tão-pouco significa que não exista um Direito penal das não-pessoas no sentido mais estrito da expressão, quer dizer, um Direito penal que trata a seres humanos como animais ou coisas. Nele não se trata de uma diminuição das garantias político-criminais de certos sujeitos activos, mas da radical desprotecção de certos sujeitos passivos. É a este Direito penal, e às bases teóricas que o sustentam, que se dedicam estas páginas.

No que segue, partir-se-á de que, em sentido estrito, para o Direito penal é inimigo aquele ser humano, e só aquele ser humano, a quem, na medida em que se considere fonte de mal-estar para aqueles que têm o poder jurídico de definição,Page 138 nega-se-lhes toda a protecção penal (e mesmo jurídica)10. Esta denegação de protecção tem lugar mediante a sua definição como não-pessoa em absoluto. Neste sentido estrito é não-pessoa para o Direito penal aquele ser humano, e só aquele ser humano, cujo substrato antropológico se desconstrói jurídica e/ou filosoficamente, sendo reconstruído como um ente pertencente ao Direito das coisas11. Como se observa, aqui sim se produz uma radical coincidência entre a condição de inimigo e a de não-pessoa. O inimigo é definido como não-pessoa; é, por definição, o “outro” a quem se exclui12. Quer dizer, aquele sujeito cujos bens, se são de certo modo protegidos, desde logo não é por uma razão de princípio, isto é, porque sejam seus, mas por alguma razão pragmática, perfeitamente susceptível de ser modificada. Basicamente, por um interesse (conjuntural) colectivo ou de certos terceiros.

A tese que aqui se sustenta é a de que, para o Direito penal contemporâneo, tais circunstâncias concorrem de modo essencial no ser humano concebido e não nascido, se bem que os argumentos que se esgrimem para a sua exclusão abarcariam coerentemente os seres humanos nascidos até que alcançam uma certa idade e, assim mesmo, os seres humanos adultos com determinadas doenças. Contudo, a estes últimos só se fará referência parcial, enquanto que o caso do concebido e não nascido será, como se indicou, o objecto essencial deste texto.

Para isso, e para os únicos efeitos de enquadrar o que segue, vale a pena fazer alusão a alguns dados. Segundo um recente relatório do Instituto de Política Familiar13, que utiliza cifras oficiais, o aborto (um facto doloso) é a principal causa concreta de mortalidade em Espanha. Vinte anos depois da despenalização do aborto mediante um sistema de indicações aplicado de forma laxa até ao extremo, observa-se um fracasso absoluto na protecção jurídica (e extra-jurídica) da vida do concebido e não nascido. Assim, desde o ano 1985 cometeram-se um total de 844.378 abortos – registados – (79.788 em 2003) com índices de incremento anual em torno de 10%. Destes abortos, 96,89 % praticaram-se com base na indicação relativa ao grave risco para a saúde (basicamente psíquica) da mãe; e 2,83 % com base na indicação eugenésica.

3. O ponto de partida do processo de exclusão14

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3.1. Introdução: seres humanos que são contemplados como “fontes de risco”

O concebido pode gerar, nos seus progenitores...

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