Ineficácia das Medidas Socioeducativas: Ressocialização do Adolescente em Conflito com a Lei

AutorAna Caroline Nunes Ferreira
Páginas383-392

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1. Introdução

Não é incomum nos dias de hoje nos depararmos com notícias sobre a violência e criminalidade praticada por adolescentes. Ao que parece, a mídia vem dando maior destaque a tais condutas com o intuito de acentuar na sociedade o sentimento de insegurança, tendo como protagonistas da criminalidade novas figuras, os jovens, os quais a sociedade deve passar a temer.

Esse fenômeno da criminalidade somado à violência deve ser encarado com sintoma de um problema social, político e institucional, fatores da complexidade que permeia as relações pessoais, institucionais e políticas da vida contemporânea. Nesse sentido, a criminalidade:

[...] constitui outro problema. Ela é expressão e consequência de uma patologia social, isto é, constitui sintoma desta patologia. E, através de sua intensidade, nos será permitido, com sensível e infalível certeza, aferirmos do grau de perturbação, dilaceração e desordem da vida social.

Um sintoma é sempre consequência — e não causa — de doença, embora possa vir a tornar-se causa de novos efeitos, ou de novos sintomas. Nesta medida, o combate ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da doença [...]. É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto quanto há que minorar, através de remédio próprio [...]. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

É óbvia, do ponto de vista intuitivo, a correlação entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas grandes cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise.1

Quando tratamos de criança e adolescente, hoje o ordenamento jurídico estabeleceu regramento de modo a torná-los sujeito de direitos e

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reconhecendo a peculiar característica de seres em desenvolvimento. Quanto ao adolescente, este se vê em uma fase de transição entre a infância e o mundo adulto, sendo tumulto das relações pessoais e as contradições comportamentais inerentes a este período. Por tais razões, essa fase de mudança física e psicológica os deixam vulneráveis a todo tipo de experimentação, inclusive no que tange ao mundo convidativo da criminalidade e da violência. Esta vulnerabilidade aflora principalmente quando estes jovens mantêm contato com ambiente familiar e comunitário desfavoráveis a um desenvolvimento educacional positivo.

No entanto este momento conturbado pelo qual passam os jovens não deve ser compreendido como algo fixo e imutável, mas como fruto também de transformações culturais, sociais e políticas, as quais afetam diretamente as relações familiares e a aprendizagem pessoal.

2. Etapas da socialização

Dentro deste raciocínio, a maioria dos adolescentes em conflito com a lei apresenta lacunas no seu processo de socialização; processo este cujas esferas primeiro passam pela família, pela escola, pelos meios de comunicação e pelo círculo de amizades. Logo, quando se trata de adolescentes institucionalizados, submetidos à prática socioeducativa de privação de liberdade, deve-se observar que tal problemática perpassa todos os segmentos sociais, todas as faixas etárias e os grupos comunitários. Em sua grande maioria, estes jovens que experimentaram a criminalidade sobreviviam numa situação de extrema carência afetiva, educacional e material, sendo precariamente socializados e educados.

No processo de socialização, a família se torna pilar imprescindível na transmissão de valores éticos e morais para o ser em desenvolvimento, o qual terá seus atos refletidos na sociedade civil organizada e, desta forma, será reconhecido pela forma de expressar tais experiências anteriores pelos valores que estes transmitirão à sociedade. De igual forma, como um ciclo, as relações familiares também são frutos de experiências políticas e sociais, as quais estão em constante modificação. Junte-se ao fato de que os meios de comunicação facilmente influenciam neste processo de socialização, pois têm ação contundente dentro do âmbito familiar.

Superada esta etapa, um segundo contato com as relações sociais se dá quando o adolescente se vê inserido num contexto social em que todos os seres se exprimem através de atos, os quais nem sempre são socialmente e moralmente aceitos. Vale ressaltar que nem todos estes atos são considerados crimes propriamente ditos, porém demonstram apenas desvios comportamentais e de caráter.

Estes jovens, por estarem num período de obscuridade quanto à sua identidade no tempo e no espaço, bem como de captação de experiências, estão vulneráveis à repetição de atos desviantes, no anseio da experimentação da vida adulta, impondo sua condição de crescimento através de autoafirmação expressada por meio da violência.

[...] é muito mais provável que a maioria das pessoas experimente impulsos desviantes com frequência. Pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais desviantes do que parecem. Em vez de perguntar por que desviantes querem fazer coisas reprovadas, seria melhor que perguntássemos por que pessoas convencionais não se deixam levar pelos impulsos desviantes que têm.2

Este segundo contato com a sociedade se dá na maioria das vezes por intermédio da escola, a qual em tese estaria incumbida de prepará-los para a vida profissional, oferecendo estruturas que possam dar efetividade ao caráter educacional da instituição. Contudo não é novo o fato de que esta etapa de socialização (escola-comunidade) também apresenta deficiências, pois deveria fazer um acompanhamento mais técnico, com auxílio de psicólogos e pedagogos, profissionais incumbidos de estreitarem as relações entre a família e a escola. Com isso, seria possível traçar melhor as características peculiares dos alunos para que suas habilidades e deficiências fossem tratadas. Vale ressaltar, que tais profissionais poderiam de pronto identificar lacunas no processo de socialização também no âmbito das relações

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familiares, desenvolvendo técnicas capazes de abrandar as consequências decorrentes da carência afetiva deixada pelos pais, bem como identificar comportamentos desviantes e trabalhá-los da melhor forma possível.

Como fruto deste conturbado contexto, temos jovens duplamente afetados, primeiro pela carência afetiva, bem como por conta da inatividade estatal diante desta situação.

O fenômeno da violência urbana nas sociedades capitalistas é complexo e exige uma compreensão multifatorial, portanto, não devemos observá-lo apenas como uma falha no sistema (capitalista), mas como próprio produto do funcionamento de um sistema que produz (e reproduz) tais experiências.3

Sendo assim, observa-se que, antes mesmo de se enfrentar a questão da ressocialização destes jovens marcados pela privação de liberdade a título de medida socioeducativa, é necessário analisar em qual esfera de sua socialização houve inércia familiar e/ou estatal. É preciso, ainda, analisar as causas do desvio de conduta destes seres e, de certa forma, reprogramar as relações cernes do problema para que a receptividade dos adolescentes institucionalizados seja eficaz ao ponto de não mais ocorrer a violação aos seus direitos, evitando-se que se vejam novamente envolvidos com criminalidade.

Surge, então, um desafio para o campo do direito no que tange à elaboração de normas protetivas, educativas e ressocializadoras que venham suprir essas lacunas na socialização destes jovens, inclusive no que pertine a previsões de criação de instituições especializadas e que possam oferecer estrutura para tanto.

3. Do estatuto da criança e do adolescente: proteção integral

Essa condição de ser em desenvolvimento, cuja relação com a criminalidade é estreita, lança um desafio para as autoridades competentes de se criarem leis e políticas públicas que alcancem todas as fases da vida, inclusive no que tange a adolescentes egressos, de modo a prever mecanismos tanto de prevenção quanto de protecionismo.

Estes ideais estão previstos no art. 227 da Constituição Federal4, que estampa o princípio da proteção integral, responsabilizando família, socie-dade e Estado no dever de cuidado, educação e de garantir o cumprimento e a não lesão dos direitos a eles concebidos. Esse novo paradigma constitucional também permeia a aplicação dos dispositivos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, instituto jurídico específico.

Nesse sentido, Maria Livia Nascimento observa que:

É preciso dizer que não se trata apenas de uma alteração de nomenclatura. Tal mudança ocorre porque a lógica que trata toda criança como cidadã de direitos, proposta pelo Estatuto, se contrapõe àquela, presente no Código, que distinguia dois tipos de infância. Uma primeira ligada ao conceito de menor, composta por crianças de famílias pobres e tidas como abandonadas e/ou delinquentes, e uma outra associada a um modelo de criança que tem uma família, vai à escola e, portanto, não necessita de proteção do Estado.5

Logo, nas disposições preliminares do referido Estatuto, estão previstos princípios e diretrizes para a aplicação das normas às crianças e aos adolescentes, bem como separa estas duas fases da vida:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

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Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

Art. 3º A criança e o...

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