Infiltração policial e instigação em cadeia: tensão no âmbito da legalidade processual penal: notas ao direito brasileiro

AutorGeraldo Prado
Páginas171-240
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INFILTRAÇÃO POLICIAL E INSTIGAÇÃO
EM CADEIA: TENSÃO NO ÂMBITO DA
LEGALIDADE PROCESSUAL PENAL:
NOTAS AO DIREITO BRASILEIRO1
Introdução
A influência das ideias jurídico-penais do Professor Manuel da
Costa Andrade no Brasil pode ser medida pelo fato de que, com
independência das várias Escolas de Processo que investigam os temas
atinentes à adjudicação de responsabilidade penal, com enfoques
diferenciados e até opostos, os processualistas penais brasileiros, sem
exceção, reverenciam o mestre português e incorporam as suas lições
nos respectivos âmbitos de pesquisa e produção teórica.
Homenagear o Professor Costa Andrade nada mais significa, pois,
que reconhecer de forma expressa essa imensa influência, marcando
posição afirmativamente no que toca à filiação inequívoca do pensamento
do homenageado à tutela concreta da dignidade da pessoa humana.
1 Artigo originalmente publicado no livro “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Manuel da Costa Andrade. vol. II: Direito Penal. Direito Processual Penal”. (In: COSTA,
José de Faria; RODRIGUES, Anabela Miranda; ANTUNES, Maria João; MONIZ,
Helena; BRANDÃO, Nuno; FIDALGO, Sónia (coord.). Coimbra: Universidade de
Coimbra, 2017).
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GERALDO PRADO
Por sua vez, a constelação de temas abordados pelo Professor Costa
Andrade, articulando os saberes da Criminologia, Direito Penal e Direito
Processual Penal, sempre na perspectiva típica do constitucionalismo
democrático, incentivou-me a eleger uma aproximação que privilegiasse
a prática, fruto de estudo que me foi solicitado para um caso concreto,
e também a teoria, no particular apta a vincular direito e processo penal.
Com este propósito, o ensaio de nossa modesta homenagem tratará
de interrogar, à luz do direito brasileiro, a validade do emprego da
infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, por meio da
criação e manutenção de uma página eletrônica na deep web, e a legalidade
ou não de recusa judicial em assegurar à defesa do imputado a identificação
do suposto agente de polícia infiltrado, usuário do sítio eletrônico.
O ensaio está organizado da seguinte forma: inicialmente são
identificados os fundamentos constitucionais da investigação criminal.
Depois, sucessivamente, são enfrentadas as questões pertinentes à estrutura
acusatória do processo penal, a legalidade da investigação criminal e a
infiltração de agentes na perspectiva da tutela contra a autoincriminação
compulsória.
Parte I: Os fundamentos constitucionais da investigação criminal
como pressuposto de validade jurídica. Ponto de partida
A jurista portuguesa Maria Fernanda Palma assinala que:
No quadro do sistema jurídico de um Estado de Direito, o Pro-
cesso Penal é um instrumento de aplicação do Direito Penal que,
no entanto, tem necessariamente de desempenhar finalidades
autônomas do Direito Penal, relacionadas com as garantias de
defesa e com a disciplina do Estado na prossecução punitiva.2
2 “O problema penal do processo penal”. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos
Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 41. Maria Fernanda Palma é professora da
Faculdade de Direito de Lisboa e Juíza do Tribunal Constitucional português.
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INFILTRAÇÃO POLICIAL E INSTIGAÇÃO EM CADEIA: TENSÃO...
O direito brasileiro não discrepa disso. Com efeito, o Supremo
Tribunal Federal teve a oportunidade de fixar entendimento no sentido
de que a persecução penal constitui “atividade estatal juridicamente
vinculada”,3 o que é compreensível na medida em que a nossa ordem
constitucional consagra a filiação ao Estado de Direito e por Estado de
Direito há de ser compreendido o vínculo funcional (Direito) entre as
pessoas e o Estado, limitador do Poder Estatal, que deve ser contido e
orientado à realização das potencialidades plenas das pessoas, em um
contexto de valorização da dignidade da pessoa humana.4
Neste sentido, toda a evolução jurídico-constitucional dos últimos
60 anos no Ocidente orientou-se à consolidação dos direitos fundamentais,
direitos humanos positivados, domesticando o poder e sujeitando-o a
nexos de causalidade, nas palavras de Mauro Cappelletti, isto é, à
funcionalidade constitucional de todos os atos de império e à proibição
de todo excesso de poder constitucionalmente relevante.5
E desde 1988, no Brasil, com a Constituição da República, este
tem sido o referente teórico a definir o cruzamento do horizonte
histórico-genético do Estado de Direito com o das funções de nossas
instituições, especialmente aquelas cuja atuação implica, necessariamente,
em imposição de restrições ao exercício das liberdades públicas dos
indivíduos.6
3 HC 73.338-7. Primeira Turma. Relator Min. Celso de Mello. DJU de 19.12.96.
Ementário n. 1855-02.
4 COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. Estado de Direito: história, teoria e crítica. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XIV.
5 La jurisdicción constitucional de la libertad con referencia a los ordenamientos alemán, suizo
y austriaco. Lima: UNAM, 2010, pp. 217/218.
6 Na defesa da opção constitucional pelo Estado de Direito, Marco Aurélio Marrafon
salienta que: “Mais além, é forçoso reconhecer que, dada a caracterização do direito
como fenômeno social complexo, especialmente ligado a processos de manifestação do poder,
sua metodologia também não se desvincula de uma determinada concepção de Estado,
de sua relação com a política, das escolhas valorativas consideradas juridicamente
relevantes e de uma análise global de seu papel em sociedade”. O caráter complexo da
decisão em matéria constitucional: discursos sobre a Verdade, radicalização hermenêutica e
fundação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 126.

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