Inovação na administração pública: o impacto da tecnologia na discricionariedade administrativa

AutorDaniel Couto dos Santos Bilcherg Calil e Valter Shuenquener de Araujo
Ocupação do AutorGraduando da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Doutor em Direito Público pela UERJ. KZS pela Universidade de Heidelberg-Alemanha
Páginas77-94
INOVAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:
O IMPACTO DA TECNOLOGIA NA
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
Daniel Couto dos Santos Bilcherg Calil
Graduando da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Valter Shuenquener de Araujo
Doutor em Direito Público pela UERJ. KZS pela Universidade de Heidelberg-Alemanha.
Professor-Associado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ (Lato
e Stricto Sensu). Professor da Pós-Graduação Lato Sensu do IDP. Secretário-Geral do
CNJ. Conselheiro do CNMP (2015-maio de 2020). Juiz Federal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Dinâmica da relação entre o Estado e novas tecnologias. 2.1.
E-Estônia – a sociedade digital. 2.2. Riscos e vieses no uso de algoritmos. 3. Tecnologia,
inteligência ambiente e legitimidade do administrador público. 4. Discricionariedade admi-
nistrativa contemporânea. 5. Ampliação do controle judicial da Administração Pública. 6.
Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Contemporaneamente, entra em cena o debate em torno da ampliação do uso
de novas tecnologias pela Administração Pública. Esse novo fenômeno, por um lado,
origina riscos a garantias fundamentais dos cidadãos, à liberdade de comunicação, à
liberdade de expressão e ao direito à privacidade, por outro é medida que se conforma
com o vetor da ef‌iciência que norteia a Administração Pública desde a promulgação
da EC 19/98. Considerando as dif‌iculdades com os mais diversos matizes em torno da
temática, mostra-se imprescindível ponderar o incentivo jurídico à incorporação de
novas tecnologias com a construção de um regime de responsabilidade pela eventual
concretização de riscos dela derivados.
Ao mesmo tempo em que a adesão da Administração Pública à inovação pode ensejar
a redução de despesas públicas, melhorar a qualidade da tomada de decisões por agentes
públicos e incrementar a ef‌iciência da atividade administrativa, ela também é capaz de
acarretar a violação a direitos fundamentais. Portanto, considerando o possível impacto
social das inovações disruptivas, faz-se necessário analisar os variados mecanismos legais
e regulatórios de prevenção, controle de riscos e responsabilização existentes.
Com relação aos algoritmos, por exemplo, surgem problemas relacionados à trans-
parência. Por mais que a publicação de seu código e de seus dados seja possível, de modo
a expor e a possibilitar a análise por qualquer pessoa de toda a lógica decisória, tais ferra-
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mentas podem se assemelhar a uma “caixa preta”. Nesse caso, não é possível ter acesso à
lógica interna que conduziu a uma determinada decisão e, no dizer de Erick dos Santos:
são trazidos argumentos de sigilo das informações utilizadas, licenças comerciais que impossibilitam
o acesso ao código ou riscos de prejuízo à ação estatal ou à imagem de seus órgãos, caso as razões
subjacentes às decisões fossem explicitadas” (SANTOS, 2016).
A questão se agrava quando analisados algoritmos que envolvem inteligência arti-
f‌icial mais complexa, como quando há aprendizagem automática.
Nesse cenário de avanços tecnológicos aptos a analisar, descrever, condicionar
e influenciar o comportamento humano, surgem debates sobre a capacidade de a
autodeterminação humana e a democracia moderna suportarem a força dirigente da
transformação digital (HOFSTETTER, 2016, p. 29).1 Considerando a existência de
uma “Inteligência Ambiente” (Umgebungsintelligenz), enquanto a característica con-
temporânea de onipresença de um ambiente digital que pensa à frente do que o homem
é capaz, questiona-se até que ponto não seria possível melhorar ou mesmo substituir a
tomada de decisões nas mais variadas dimensões sociais (HOFSTETTER, 2016, p. 28),
até mesmo na Administração Pública, conf‌iando-se em recomendações de tecnologias
cada vez mais inteligentes.
A despeito das múltiplas possiblidades existentes, há quem identif‌ique, em um
esforço de sistematização, ao menos quatro formas de interação entre a tecnologia e o
aparato estatal, quais sejam: (i) relações de equivalência; (ii) de instrumentalidade; (iii) de
incentivo; (iv) de normatização (BAPTISTA; KELLER, 2016, p. 132, 133). Busca-se, aqui,
dar destaque às relações de instrumentalidade, circunstâncias em que a Administração
Pública se vale de inovações tecnológicas para aprimorar e executar políticas públicas.
Em contraposição aos potenciais riscos nessa relação, há, também, diversos benefícios à
coletividade e à legitimidade da atuação estatal, que justif‌icam a adoção dessas inovações
pelo Estado, e, nesse sentido, Baptista e Keller (2016, p. 135, 136):
[...] as tecnologias digitais em rede apresentam um relevante potencial como ferramentas de governo,
viabilizando a expansão da participação popular nas atividades conduzidas por órgãos públicos em
geral. Conforme constata Coglianese, a produção normativa protagonizada pelas agências reguladoras
demanda uma extensa coleta e análise de informação técnica necessária à organização e administra-
ção do processo normativo em si e para construção da solução regulatória pretendida. Nesse sentido,
tecnologias que auxiliam a organização, recuperação e análise de vastas quantidades de informação
colaboram signicativamente para a qualidade da regulação, provendo maior velocidade e precisão
do resultado nal. Além disso, a construção de websites que permitem a contribuição em processos de
consulta pública, bem como o acesso a agendas públicas, relatórios e documentos em geral, representa
um avanço em termos de participação popular e transparência nesses processos.
Dessa forma, enfatiza-se, sem ignorar os potenciais efeitos deletérios, a repercus-
são positiva que as inovações tecnológicas podem ter sobre o processo de tomada de
decisões públicas e sobre a extensão do controle judicial. Esse debate se impõe, porque
a aderência da Administração Pública a novas tecnologias já é uma realidade, não só no
1. No original, p. 29: “Die Frage, wie bewährte Strukturen und Konzepte der materiellen Welt, also etwa Selbstbes-
timmung und Demokratie, der lenkenden Kraft der digitalen Transformation widerstehen könnten, ist bis jetzt
nur bruchstückhaft beantwortet”.
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