Institucionalização e contestação: as lutas do Movimento Negro no Brasil (1970-1990)

AutorLeonardo Rafael Santos Leitão, Marcelo Kunrath Silva
Páginas315-347
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017V16N37P315
315315 – 347
Institucionalização e contestação:
as lutas do Movimento Negro
no Brasil (1970-1990)
Leonardo Rafael Santos Leitão1
Marcelo Kunrath Silva2
Resumo
A partir da análise da trajetória do Movimento Negro brasileiro na década de 1980, o presente
artigo aborda como organizações e ativistas que formam o Movimento interpretaram e se apro-
priaram de distintas oportunidades políticas disponíveis em diferentes contextos político-insti-
tucionais. Argumenta-se que, a partir de suas capacidades, objetivos e estratégias, os atores da
rede do Movimento Negro utilizaram diversos repertórios de ação na busca da transformação
do quadro de profundas desigualdades raciais no país. Enfocando elementos como o ten-
sionamento e o ativismo institucionais, sustenta-se que a identif‌icada institucionalização de
organizações e ativistas do Movimento no período pesquisado não signif‌icou necessariamente
o abandono de formas de confrontação extrainstitucional. Ao contrário, a pesquisa realizada
mostra complexas relações estabelecidas entre institucionalização e contestação na trajetória
do Movimento Neg ro, que confrontam a tr adicional contraposição destes dois processos na
literatura de movimentos sociais.
Palavras-chave: Movimento negro. Movimentos sociais. Institucionalização. Ativismo
Institucional.
1 Doutor em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: leonardorsl@uffs.edu.br.
2 Doutor em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Associado da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: mksilva@ufrgs.br.
Institucionalização e contestação: as lutas do Movimento Negro no Brasil (1970-1990) | Leonardo Rafael Santos Leitão e
Marcelo Kunrath Silva
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Introdução3
Este artigo4 tem como foco a análise das recongurações do Movimento
Negro5 brasileiro entre as décadas de 1970 e 1990. Busca-se aqui analisar
como organizações e ativistas que conformam o Movimento Negro interpre-
taram e agenciaram distintas oportunidades políticas disponíveis em diferen-
tes contextos político-institucionais e, a partir de suas capacidades, objetivos
e estratégias, desenvolveram ações na busca da transformação do quadro de
profundas desigualdades raciais no país. Uma das características marcantes
do período analisado é a abertura de diversas oportunidades de participação
institucional (como conselhos, fóruns, conferências, ocupação de cargos de
conança, implementação de políticas públicas, entre outras) para ativistas e
organizações de movimentos sociais (OMSs) na formulação, implementação
e/ou controle de políticas públicas. Argumenta-se que tais oportunidades, in-
tensicadas a partir dos anos 1990, vêm facilitando o acesso institucional de
militantes e lideranças negras e, através da atuação destes, de suas demandas
na agenda das políticas de Estado. Conforme Ubiali (2006), o Movimento
Negro tem sido um dos principais atores sociais a ocupar e a transformar estes
espaços participativos em locais de disputa política. Portanto, não se trata
apenas da abertura de canais participativos, mas também de novas formas de
relação entre Estado, OMSs e ativistas que alteram a própria conguração dos
movimentos sociais e que precisam ser analisadas pelas ciências sociais.
No entanto, a perspectiva dominante na literatura de movimentos so-
ciais no Brasil, centrada no pressuposto de que os movimentos sociais se
constituíam como opositores externos aos agentes e instituições estatais, di-
cultou o desenvolvimento de análises que levassem em conta a complexi-
dade das relações entre movimentos sociais e Estado, em especial no período
3 Os autores agradecem a avaliação crítica dos pareceristas anônimos, que contribuíram para a qualif‌icação de
aspectos formais e de conteúdo do artigo.
4 O presente artigo se baseia em uma análise mais ampla sobre o Movimento Negro no Brasil, a qual é
desenvolvida em Leitão (2012).
5 “Movimento Negro” é um termo de autodef‌inição da ampla e heterogênea rede formada por organizações,
grupos e indivíduos que atuam no sentido de enfrentar e transformar o quadro de profundas desigualdades
raciais existentes no Brasil. Nesse sentido, o Movimento Negro não constitui uma unidade nem um
“personagem” unif‌icado, mas sim uma rede diversa e, por vezes, marcada por divergências e conf‌litos mais ou
menos signif‌icativos entre seus membros.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 37 - Set./Dez. de 2017
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pós-ditadura. A ocorrência de uma crescente inserção de militantes sociais nas
estruturas estatais a partir dos anos 19806, conformando uma das formas do
processo denominado pela literatura como “ativismo institucional” ou insider
activism (ABERS; TATAGIBA, 2014; BANASZAK, 2005; CAYRES, 2015;
PETTINICCHIO, 2012; SANTORO; MCGUIRE, 1997)7, tendeu a ser in-
terpretada como expressão direta de desvios estratégicos ou cooptação política.
O ponto de vista adotado aqui visa a problematizar tal generalização, a partir
do argumento de que a inserção institucional (e, a partir dela, o ativismo
institucional) é um dos repertórios de ação possíveis de serem utilizados pelos
movimentos sociais na busca de seus objetivos, principalmente em contextos
democráticos.
A hipótese levantada é a de que, em determinados contextos político-
-institucionais, a possibilidade de os movimentos sociais terem suas deman-
das em relação ao Estado atendidas passa, ainda que não exclusivamente,
por uma inserção deste. Sustenta-se que, através do ativismo institucional
oportunizado por esta inserção, ativistas e OMSs adquirem acesso (variá-
vel) a recursos, espaços deliberativos e agentes dotados de poder de decisão
que podem adquirir um valor estratégico para a realização de seus objetivos
(conformando o mecanismo denominado por Tarrow de apropriação insti-
tucional8). Tal acesso se apresenta particularmente relevante para o caso de
movimentos sociais constituídos por segmentos subalternos da sociedade,
que se encontram em posições sociais marcadas pela precariedade de recur-
sos e de oportunidades políticas.
Argumenta-se, então, que o confronto político pode tomar variadas ex-
pressões de acordo com as possibilidades e limites do acesso institucional es-
tabelecidos pelo contexto político-institucional e, ainda, pelas interpretações
6 Dowbor (2012) demonstra que este processo ocorreu inclusive no período ditatorial, com muitos ativistas
do movimento pela reforma sanitária ocupando posições no Estado e utilizando tais posições para defesa/
promoção das demandas e propostas do movimento.
7 Santoro e McGuire (1997, p. 504) def‌inem os ativistas institucionais como “[...] participantes de movimentos
sociais que ocupam posições formais dentro do governo e perseguem os objetivos do movimento através de
canais burocráticos convencionais. Ativistas institucionais são membros da polity na medida em que eles têm
acesso rotineiro e de baixo custo aos decisores”.
8 Tarrow (2001, p. 15) def‌ine o mecanismo de apropriação institucional como o uso, por determinados ativistas
e/ou organizações de movimentos sociais, “dos recursos ou reputação de uma instituição para servir aos seus
[dos movimentos sociais] propósitos”.

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