O Instituto do Banco de Horas Previsto na Lei n. 13.467/2017 - Análise e Sugestões

AutorAlda Barros
Páginas76-86

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Ver Nota1

1. Introdução

A reforma trabalhista promovida pela Lei n. 13.467, de 2017, deixa a impressão de ilegitimidade e inconstitucionalidade em diversos pontos, sendo evidente o objetivo de atender apenas aos anseios do empresariado, retomando-se um modelo de reificação do homem-que-trabalha.2

No momento, atordoados que se encontram ainda os juristas laborais, há mais dúvidas que certezas. Nesse contexto, é necessário questionar, ainda que breve-mente, se o mesmo arcabouço do Direito do Trabalho vigente no país, componente da infraestrutura legal que busca manter o atual modo de produção, deverá prevalecer ad infinitum.

Será que os modelos de relação de trabalho a surgir na sociedade contemporânea comportam a subordinação típica do contrato de trabalho? A subordinação estrutural ou reticular se adapta integralmente ao mesmo padrão? Estaríamos numa fase intermediária de superação das relações de trabalho e rumo a um modelo mais humano e igualitário? A tecnologia vem em auxílio às pessoas, fomentando novas formas de acesso aos bens da vida sem necessidade de uma carga de trabalho tão árdua? Haverá espaço para o ócio criativo no futuro próximo? O planeta Terra vai acabar nos próximo 600 anos?

São dúvidas existenciais, tanto na esfera da permanência longínqua do próprio ser humano quanto nas verdades com que os defensores do Direito do Trabalho precisam se deparar. Não há respostas conhecidas e o trânsito que se faz no momento é na seara das incertezas.

Assim sendo, parece necessário sempre pôr em xeque os parâmetros até então consolidados, vislumbrando-se a possibilidade, mesmo que no momento pareça remota, de que a atual crise pela qual passa o Direito do Trabalho no Brasil possa vir a representar algum salto de qualidade nas relações de trabalho no futuro, ainda que distante.

Por ora, o que se constata é um movimento mundial perverso, eis que pela volatilidade dos parques empresariais, o alto custo da produção leva à transferência de unidades, à terceirização e quarteirização de atividades, à produção de componentes em países periféricos, desprovendo-se o trabalhador do “know-how de toda a cadeia do produto, tornando-o mais descartável a cada dia, como já bem demonstrou Ricardo Antunes.3

A Europa vive a crise do Direito do Trabalho. A América Latina padece pela falta de reconhecimento da dignidade de seus trabalhadores e pelas ameaças que

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estão sendo consolidadas. Todos esses elementos levam a uma posição pessimista, de triunfo do capital sobre o homem. Não há respostas ou saídas nesse instante.

A economia ensina que é preciso aumentar o bolo antes de reparti-lo. As ondas do capitalismo, sempre cíclicas, mostram que há momentos de alta e baixa, assim como o fluxo da vida e os movimentos do coração.

É assente a ideia de que quanto maior o poder aquisitivo dos trabalhadores, maior a produção na indústria pesada e na de bens de consumo, gerando mais lucro aos detentores dos meios de produção, num círculo chamado de virtuoso.

Sendo assim, qual o motivo de tantas medidas de flexibilização, de precarização e de fragilização do trabalhador? A falácia do aumento dos postos de trabalho não engana ninguém, nem os liberais de boa-fé.4 5

Em busca de uma referência histórica, talvez capaz de servir de comparação a um momento de crise, percebe-se que na época dos “enclousures”, a população migrou para as cidades e possibilitou a aglomeração de trabalhadores nas fábricas, em condições de trabalho verdadeiramente degradantes.6

A transição de um sistema de trabalho servil para o urbano e industrial, com evidente empobrecimento imediato dos trabalhadores, levou ao crescimento das cidades e à geração de diversas tecnologias (máquinas a vapor, eletricidade etc.), que no futuro trouxeram mais conforto à população.

Toda essa tecnologia consistiu realmente em avanços ou a vida no campo era mais natural e benéfica? A resposta tende a ser positiva para a primeira questão na medida em que a expectativa de vida da população mundial vem aumentando gradualmente desde então.
O que se mede em termos de quantidade de vida tem reflexo na qualidade, eis que as diversas inovações da era moderna contribuíram para uma vida mais confortável e saudável.

O que se vislumbra no momento, no entanto, é retrocesso. A organização sindical, fundada em dois pilares principais – redução de jornada e aumento de salário – obteve diversas conquistas para a classe trabalhadora nos países civilizados, havendo uma clara e crescente diferença no patamar de vida dos operários ao longo dos últimos 200 anos.

As garantias de limitação de jornada e de irredutibilidade salarial vêm sendo alvo de medidas restritivas, como exemplifica o banco de horas instituído no Brasil ainda em 1998, por meio de medida provisória transformada na Lei n. 9.601/1998.

É sobre esse instituto, severamente modificado pela Lei n. 13.467/2017, que serão tecidas algumas considerações.

As demais provocações, obviamente, ficarão sem resposta, eis que virão como fruto do desenvolvimento social, dos processos culturais de conquistas de direitos e do próprio amadurecimento do ser humano.

À parte isso, é possível concluir que não se verifica uma mudança estrutural com as medidas recentemente adotadas, de sorte que pensar na reforma trabalhista como a saída para as relações de trabalho, mercado e empregabilidade parece uma grande falácia.

Não obstante a possibilidade de avanços em médio e longo prazo, movidos pelo desenvolvimento desejável da sociedade, esse não é o cenário atual e nem é essa a intenção subjacente da chamada reforma trabalhista. O economista Marcio Pochmann, em entrevista sobre a reforma, pontua: “há uma destituição de direitos que termina, dessa forma, com uma economia mais frágil e incapaz de responder a questões mais abrangentes que hoje estamos vivendo, relacionadas a temas de investimento, modernização e inovação.”7

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Por ora, mantendo-se à margem questões de política e economia, até porque fora do âmbito de especialidade da articulista, a proposta é a de verificar os acréscimos da Lei n. 13.467/2017 ao instituto do banco de horas, apresentando algumas sugestões na tentativa de compatibilizá-lo ao arcabouço de garantias constitucionais. Antes, contudo, passa-se por uma breve análise sobre a evolução dos direitos sociais e sobre a noção de dignidade humana.

2. Breve evolução dos direitos sociais e dignidade humana

No início do Século XX, após a primeira Grande Guerra, surgiram nas Constituições normas de proteção ao trabalhador (Mexicana de 1917 e Alemã de 1919). A OIT, criada em 1919, implementa uma política inter-nacional de proteção às relações de trabalho. Tem-se o início do estado social, aperfeiçoando-se o arcabouço jurídico-internacional após a Segunda Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os Pactos dos Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966, firmados separadamente pelas nações em razão da cisão entre as nações criada pela Guerra Fria.

A partir da separatividade dos direitos civis e políticos dos denominados direitos sociais, as nações firmaram os pactos de acordo com cada preferência política e ideológica.8

O Estado brasileiro firmou os dois pactos em 1992,9 após a retomada da democracia e da intenção do país em promover um Estado social na Constituição de 1988, cujo texto abriga diversas normas de direitos sociais, consolidando formalmente um Estado com objetivo de promover o fim das desigualdades sociais e a erradicação da pobreza, dentre elas várias medidas de proteção ao trabalhador, trazendo para o ordenamento nacional as regras que disciplinam os direitos humanos vigentes no âmbito do direito internacional.

José Claudio Monteiro de Brito compreende direitos humanos como o “conjunto mínimo de direitos que permitem ao ser humano viver com dignidade”.10 O autor relaciona a noção de dignidade no trabalho ao conceito de trabalho decente.11

Ingo Sarlet define dignidade humana como12:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (sem grifos no original)

Flávia Piovesan afirma que a dignidade humana é o princípio maior, fundante e nuclear do Direito dos Direitos Humanos13.

Konder Comparato é enfático ao estabelecer como função do direito a proteção da dignidade humana, “da nossa condição de único ser no mundo capaz de amar, descobrir a verdade e criar beleza.”14

No Brasil, a dignidade humana foi alçada a fundamento do Estado Democrático de Direito pela CRFB.15

Monteiro de Brito, ao vincular direitos humanos à dignidade e dignidade do trabalhador à noção de trabalho decente, enuncia um rol de direitos mínimos. Defende que a noção de direitos mínimos pode ser extraída a partir de normas internacionais, como o PIDESC e

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das Convenções Fundamentais da Organização Inter-nacional do Trabalho.16

Sua concepção de trabalho decente é a seguinte:17

É o conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde à existência de trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho; ao trabalho em condições justas, incluindo a remuneração, e que preservem sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais.

A noção de trabalho decente...

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