Instrumentos processuais à serviço da democratização do provimento jurisdicional de políticas públicas

AutorSabrina Nasser de Carvalho
Páginas179-263
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INSTRUMENTOS PROCESSUAIS À
SERVIÇO DA DEMOCRATIZAÇÃO DO
PROVIMENTO JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
4.1 REPRESENTATIVIDADE ADEQUADA E DEMOCRACIA
PROCESSUAL
4.1.1 Legitimação coletiva
No capítulo anterior, destacou-se a importância e o peso político das
ações coletivas, seja por sua característica de transindividualidade, recaindo
os seus efeitos sobre o patrimônio jurídico de uma massa de interessados,
seja por se tratar de instrumento processual inegavelmente mais adequado
a discutir assuntos de alta relevância social. Por esta razão, a correta definição
daqueles a quem o sistema jurídico outorga legitimação para a propositura
e a condução deste importante instrumento jurídico-político representa um
dos aspectos principais a concorrer para o êxito na consecução dos objetivos
constitucionais traçados aos processos coletivos.
O sistema processual coletivo brasileiro iniciou-se com a previsão da
ação popular, elegendo o cidadão como legitimado à sua propositura,
com poderes para questionar em juízo as ilicitudes e imoralidades que
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SABRINA NASSER DE CARVALHO
tornam nulos os atos emanados do Poder Público. Contudo, de acordo
com a análise de Ada Pellegrini Grinover, o objeto restrito da ação po-
pular e a legitimação, que não contemplava os órgãos públicos, não
faziam desta ação um instrumento efetivo.339
Diante das fragilidades apresentadas pelo modelo de legitimação
individual contemplada na ação popular, e, com vistas ao fortalecimento
do autor da demanda coletiva, optou-se por excluir a legitimação do cida-
dão para a propositura da denominada ação civil pública. Deste modo, a
Lei n. 7.347/85, em seu artigo 5º, integrada posteriormente ao artigo 82
da Lei n. 8.078/90, outorgou legitimação concorrente aos órgãos públicos
e às associações civis, perfazendo-se o modelo misto de legitimação.340
A escolha legislativa por determinados órgãos públicos e pelas asso-
ciações retrata uma opção política consagrada no sistema processual brasi-
leiro. Trata-se de legitimação determinada ope legis e, portanto, rol taxativo.
Deste modo, o legislador antecipou-se e franqueou legitimação àqueles que,
diante de sua posição e função exercida perante a sociedade e de suas atri-
buições constitucionais, apresentam melhores condições e capacidade de
identificar os interesses fragmentados e dispersos na sociedade e de atuar com
representatividade e idoneidade na defesa destes interesses coletivos. No
sistema misto, a potencialidade dos entes públicos une-se às vozes e aos
anseios populares, estes expressos por meio da sociedade civil organizada.
Entre os entes públicos legitimados à propositura das ações cole-
tivas, destacam-se o Ministério Público e a Defensoria Pública.341 342 As
339 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Significado social, político e jurídico da tutela dos
interesses difusos”. RePro, São Paulo: RT, n. 97, pp. 9-15, 2000, p. 11.
340 Conforme relata Kazuo Watanabe, há três opções para a legitimação coletiva: a) a
legitimação privada, em que contempla apenas a pessoa física e a associação; b) a
legitimação pública, que admite a legitimação apenas dos entes públicos; c) a legitimação
mista, que admite tanto a legitimação das pessoas físicas e associações como os entes
públicos. (Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito
comparado. São Paulo: RT, 2008, pp. 301/302).
341 Artigo 129 da Constituição Federal: “São funções institucionais do Ministério Público:
(...) II – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
342 A legitimidade para o ajuizamento de ações civis públicas pela Defensoria Pública
já era aceita pela jurisprudência, com arrimo no artigo 5º, III, da Lei n. 7.347/85 c/c
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PROCESSOS COLETIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
prerrogativas constitucionais inerentes às funções que estes agentes po-
líticos ocupam, aliadas aos poderes investigatórios relacionados ao in-
quérito civil e a seus procedimentos,343 344 fazem destas instituições
mecanismos eficientes de enfrentamento dos grandes violadores dos
direitos transindividuais. Não há dúvidas de que a atuação coletiva des-
tes órgãos proporciona a ampliação ao acesso à justiça e ainda contribui
para a proteção de interesses sub-representados, a exemplo do meio
ambiente ou do direito urbanístico.345
Não se pode olvidar ainda a contribuição dos órgãos que integram
a Administração Pública, direta ou indireta. A legislação ampliou sabi-
damente a legitimidade ad causam para abrangê-los, ainda que despidos
artigo 82, III, da Lei n. 8.078/90. Posteriormente, a Lei n. 11.448/2007 introduziu o
inciso II no artigo 5º da Lei n. 7.347/85, mencionando expressamente a Defensoria
Pública como órgão legitimado à tutela coletiva. Após a edição desta lei, a Associação
Nacional do Ministério Público – CONAMP ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADI n. 3943), sob o argumento de que a legitimidade da Defensoria Pública à ação
civil pública afetaria a sua atribuição e, ainda, que aquela instituição tem seu objetivo
institucional restrito a atender os necessitados que comprovem, individualmente, carência
financeira. Ada Pellegrini Grinover, em parecer apresentado nesta ação declaratória,
defendeu a constitucionalidade da lei, nos seguintes termos: “(...) a ampliação da
legitimação à ação civil pública representa poderoso instrumento de acesso à justiça,
sendo louvável que a iniciativa das demandas que objetivam tutelar interesses ou direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos seja ampliada ao maior número possível
de legitimados, a fim de que os chamados direitos fundamentais de terceira geração – os
direitos de solidariedade – recebam efetiva e adequada tutela”. O STF julgou, em
07.05.2015, improcedente, por unanimidade, a ADI, reconhecendo a constitucionalidade
da lei que atribuiu legitimação à Defensoria Pública, inclusive quanto aos direitos difusos.
344 A Defensoria Pública é dotada de poder requisitório, consoante expressamente
previsto na Lei Orgânica da Defensoria Pública 80/94, artigo 128, X.
345 “Nessa dinâmica, os interesses difusos e coletivos tendem a permanecer sub-
representados. Tendo em vista a sua dispersão, acabam não sendo transmitidos
adequadamente pelos mecanismos de mercado. (...) As demandas do tipo coletivo, ao
contrário, não são praticamente transmitidas porque, em virtude de seu alto grau de
dispersão, os sujeitos interessados agem como free-riders (caronas), tentando se beneficiar
da iniciativa de outras pessoas na defesa do bem comum em disputa, o qual, caso se
concretize os abrangerá, sem qualquer custo ou compensação”. (SALLES, Carlos Alberto
de. “Execução específica e ação civil pública”. In: MILARÉ, Édis (coord.). A ação civil
pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005, p. 129).

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