Insurgent Law: Marxist Foundations from Latin America/Direito Insurgente: Fundamentacoes Marxistas desde a America Latina.

AutorPazello, Ricardo Prestes

O presente estudo pretende ser uma sintese da tese de doutoramento por mim defendida em 2014, junto ao Programa de Pos-Graduacao em Direito da Universidade Federal do Parana, a qual foi intitulada Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a critica marxista ao direito. (1) Nela, reflito sobre a relacao entre direito e movimentos populares a partir do signo da insurgencia, evocando para tanto as fundamentacoes da teoria critica latino-americana identificada com o giro descolonial do saber e do poder, mas tambem as do marxismo. Nesse sentido, procuro resgatar o debate descolonial com a baliza do marxismo, assim como me interesso pelas consequencias do marxismo para o contexto geopolitico concreto da America Latina. Um sem outro se tornam corpo sem alma, critica sem armas.

Em especifico, quanto ao marxismo invisto em analises de Marx sobre o direito, assim como sobre os movimentos populares. Na esteira desta releitura, proponho uma refundacao da critica marxista no ambito da analise do fenomeno juridico, com uma fundamentacao na teoria do valor mas tambem em um projeto politico revolucionario. Isto da margem para analisar o pensamento marxista sovietico, inclusive o de seus mais importantes juristas.

Por fim, apresento o direito insurgente como uma proposta transitoria, dentro de contextos geopoliticos como o do continente latino-americano, de uso tatico do fenomeno juridico. Uma critica descolonial-marxista ao direito, portanto. Nesse diapasao, o direito insurgente decorre do legado da teoria critica do direito latinoamericana, subsumindo-a, mas ao mesmo extravasando-a, na medida em que usos combativos, relidos e assimetricos do direito (tipicos da interpretacao assentada no continente) precisam ser superados por usos duais revolucionarios e, finalmente, desusos de tal fenomeno. E o que sintetizo a seguir.

  1. Sobre direito e movimentos populares

    No contexto latino-americano, os movimentos populares representam, pela via da praxis, a celula do discurso de visao critica ao direito. Ainda assim, nao deixam eles de apresentar algumas disjuntivas politicas dentro de tal conjuntura.

    Todas as relacoes sociais sao atreladas as formas de producao da vida. Por sua vez, os cortes estruturais da sociedade representam o conjunto de relacoes marcadas pelas inerentes formas de classificacao social havidas sob o sistema mundial capitalista moderno e colonial. Sao cortes estruturais, segundo o que aqui entendo, o de classe, o de raca/etnia e o de genero: mais do que meros marcadores de diferencas, consubstanciam-se em relacoes sociais magnetizadoras das complexas polarizacoes que caracterizam a sociedade capitalista.

    Florestan Fernandes ja dizia que

    a classe social so aparece onde o capitalismo avancou suficientemente para associar, estrutural e dinamicamente, o modo de producao capitalista ao mercado como agencia de classificacao social e a ordem legal que ambos requerem, fundada na universalizacao da propriedade privada, na racionalizacao do direito e na formacao de um Estado nacional formalmente representativo. (2) Portanto, o horizonte historico referente a modernidade e marcado pela subordinacao do trabalho, por suas intrinsecas origens coloniais e pela reconfiguracao--evidente --do patriarcado. Dai classe, raca e genero serem os cortes estruturais de nossa sociedade. Ha, inclusive, "formas de classificacao social", segundo Anibal Quijano, pois "desde a insercao da America no capitalismo mundial moderno/colonial, as pessoas se classificam e sao classificadas segundo tres linhas diferentes, mas articuladas em uma estrutura global comum pela colonialidade do poder: trabalho, genero e raca". (3) Logo, capitalismo e America sao gemeos univitelinos.

    Entrementes, os movimentos populares sao uma mediacao organizativa entre os sentidos objetivo e subjetivo de classe que agrega condicoes etnicas e de genero. Os movimentos populares sao mais especificos que os movimentos sociais (todas as formas de organizacao social, inclusive, as formas conservadoras e/ou burguesas) e menos particulares que os movimentos operarios (especificacao subjetiva da classe que e uma dentre as realidades possiveis do movimento popular). Implicam toda uma discussao a respeito de formulacoes que deem conta, dentro dos parametros do marxismo latinoamericano, de expressar quem e o sujeito historico, e coletivo, da ruptura com os cortes estruturais (questionamento classico da teoria da organizacao politica revolucionaria).

    Para alem de tal debate, o que nao posso aprofundar aqui, os movimentos populares configuram-se como momentos oscilatorios entre polos complementares (mais do que opostos, como a teoria dos "novos" movimentos sociais buscou construir). Assim, percebo quatro disjuntivas nesta caracterizacao: a) espontaneidade-organizacao; b) reivindicacao-contestacao; c) denuncia-anuncio; d) especificidade-totalidade.

    E certo que a relacao entre direito e movimentos vem a ser mais um objeto teorico que um objeto real, ou seja, mais uma forma de representar um problema em abstrato do que de descrever em detalhes um fenomeno concreto. Portanto, minha pesquisa se apresenta mais como de teoria (critica) do direito do que de sociologia juridica. O avanco possivel, porem, e o de encontrar o ponto de convergencia desta relacao.

    Em um sentido teorico-pratico da relacao entre direito e movimentos, tal ponto de convergencia se apresenta como sendo a criminalizacao dos movimentos populares. Aqui, todavia, procuro oferecer uma nova tentativa de convergencia, a insurgencia (a partir das disjuntivas) e a critica ao conceito pressuposto do juridico na relacao aludida.

  2. Critica Descolonial do Poder

    A primeira fundamentacao para um direito insurgente, verdadeira base de sua sustentacao teorica, credito as teorias criticas latino-americanas. Contemporaneamente, o debate que consegue, a meu ver, sintetiza-las e o do giro descolonial.

    A questao descolonial, aqui, e por mim enfocada a partir da colonialidade como relacoes politicas e epistemicas (e nao meramente a historia politica colonial), bem como englobando a tradicao teorica da periferia latino-americana, agregando o marxismo e a totalidade centro-periferia.

    Entre a critica macroestrutural ao sistema social e a critica que considere o que e especifico ao fenomeno juridico, encontra-se a mediacao necessaria do ponto de partida geopolitico, que tem na dependencia seu crivo.

    A insercao do continente no sistema capitalista como periferia dependente pode ser vista pela teoria da dependencia, cujas fontes constitutivas foram, as vezes como continuacao outras como superacao, o pensamento critico latino-americano desde Jose Carlos Mariategui, o debate com os Partidos Comunistas (PCs) quanto as teses sobre existencia ou nao do feudalismo no continente e a critica as teses da Comissao Economica para a America Latina e o Caribe (CEPAL) alicercadas em uma politica de desenvolvimento.

    Para a teoria da dependencia, de perspectiva marxista, o problema da dependencia (e do subdesenvolvimento) e relacional. Assim, o subdesenvolvimento e "relativo" nao so porque cada cultura tem seus parametros de desenvolvimento mas porque nao ha mais isolamento possivel entre elas, as culturas, nos marcos do capitalismo. Gunder Frank, por exemplo, o expressou notoriamente na ideia de desenvolvimento do subdesenvolvimento e subdesenvolvimento do desenvolvimento. (4) Entendendo a dependencia como totalidade relacional, ao mesmo tempo que interna, enxerga os seus varios efeitos, dentre os quais o desenvolvimento das metropoles; o subdesenvolvimento dos satelites; o relativo desenvolvimento dos satelites conforme seu afastamento das metropoles; e o ultra-subdesenvolvimento dos satelites conquanto voltem as relacoes com a metropole.

    De modo equivalente, a questao aparece em Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra, os quais destacam a relacionalidade da nocao de dependencia. Para Marini, a relacao de dependencia e distinta das relacoes coloniais e tem sua razao ser na superexploracao da forca de trabalho e na transferencia de mais-valia das periferias para o centro acumulador de capital. (5) Dos Santos acresce a relacionalidade, totalidade e internalidade da dependencia, a condicionalidade, ou seja, aquela que "determina os limites e possibilidades de acao e comportamento dos homens". (6) Por sua vez, Vania Bambirra estabelece uma tipologia sobre as estruturas sociais dependentes, dividindo-as em diversificadas (tipo A) e primario-exportadoras, estas ultimas subdivididas em paises com industrializacao resultante de integracao monopolica (tipo B) e paises de estrutura estritamente agrario-exportadora (tipo C). (7)

    Ao lado da perspectiva relacional, ressalta-se tambem, nos teoricos marxistas da dependencia, o dimensionamento de um projeto politico revolucionario, o que permitiu, inclusive, a superacao do eurocentrismo etapista de visualizar na America Latina um feudalismo. A revolucao nao precisaria esperar o capitalismo (supostamente pleno) chegar para se dar, uma vez que a marca da dependencia e fazer da periferia do capital um local de capitalismo subdesenvolvido.

    Assim, o crivo da dependencia--em sua totalidade, relacionalidade, condicionalidade, internalidade e rigor tipologico--da conteudo material para o giro descolonial que se posiciona, criticamente, em um "sistema-mundo patriarcal/ capitalista/colonial/moderno" e, sem ele, esta critica nao vai adiante.

    Com isto em mente, o debate mais contemporaneo sobre o giro descolonial fica balizado. A teoria marxista da dependencia serve de reserva critica, sempre vigilante, para as contribuicoes posteriores de Quijano, Mignolo e Dussel, as quais sao muito importantes, mas nao podem se desapegar de tal referencia.

    Neste sentido, a critica a colonialidade do poder permite sugestoes a respeito da forma do direito na heterogeneidade historico-estrutural e dependente. Trata-se da proposta interpretativa de Anibal Quijano, para quem a anterioridade geopolitica...

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