O Insustentável Quandro de Apreciação da Personalidade do Agente na Prática Penal Brasileira

AutorVinícius Machado
CargoBacharel em Direito pela Universidade de Brasília (1º/2006) - Mestrando em Direito pela UnB (ingresso em 2007).

Inúmeros doutrinadores incorporaram e reproduzem magistralmente os ensinamentos da Escola Positiva do Direito Penal. Não é sem razão que se pode encontrar até hoje escritos fundados em preceitos que remontam à época de César LOMBROSO, Enrico FERRI e Rafael GAROFALO.

Enrico ALTAVILLA1, adepto dessa Escola, expõe as mais diferentes classificações de delinqüentes. Para FERRI, existem delinqüente por tendência, delinqüente habitual, delinqüente profissional, delinqüente louco e delinqüente ocasional. Hans GRUHLE entende que há delinqüentes por inclinação, delinqüentes por fraqueza, delinqüentes por paixão e delinqüentes por honra e convicção. Cite-se ainda a classificação de Edmund MEZGER: delinqüente de conflito, delinqüente de desenvolvimento, delinqüente por disposição, delinqüente por inclinação e delinqüente de estado.

A certo ponto, as classificações se tornam tão ramificadas e complicadas que mesmo ALTAVILLA se perde quando se propõe a explicar cada conceito. A quantidade de tipificações de delinqüentes só demonstra o quão discricionárias e pouco criteriosas elas são.

Enfim, ALTAVILLA consigna seu ponto de vista acerca de predisposição, inclinação e tendência para delinqüir.

“A predisposição indica uma facilidade de recepção de um estímulo externo, uma estrutura adaptada a particulares reacções (...). A inclinação representa uma situação psico-ética intermédia (...). A tendência revela uma disposição duradoira para agir de determinado modo, (...) de maneira a revelar uma linha de conduta constante”2.

São esses preceitos que lastreiam o entendimento de personalidade que se firmou no âmbito jurídico. De fato, conferiu-se grande importância à personalidade como critério de fixação da pena.

Com Lydio Machado Bandeira de MELLO3, admitiu-se a concepção de que a personalidade é o segundo critério mais importante para a fixação da pena, considerando-se a culpabilidade como a primeira das circunstâncias judiciais. A seu tempo, Heleno FRAGOSO4 alça a personalidade do agente a primeiro plano. Consoante explica o jurista, o juiz ajusta a pena ao autor do crime, atendendo às peculiaridades de sua personalidade moral, além de examinar se a conduta delituosa é expressão da maneira de ser do criminoso.

MELLO5 chega a delimitar elementos constitutivos ou formadores da personalidade, tais como idade do réu, seu desenvolvimento físico e mental, a educação que recebeu, o meio em que foi criado e que tem vivido, ou seu grau de instrução, a sua inteligência etc. Decerto pessoas “bem nascidas” possuem uma personalidade “melhor”, segundo essa perspectiva.

Preconiza José Frederico MARQUES6 que a personalidade humana é fator preponderante para a aplicação da pena. “A incidência da pena sobre uma conduta típica sofre a refração da pessoa que delinqüiu, pois o agente do crime terá a punição graduada em razão dos traços que lhe marcam a personalidade”. Sob esse prisma, acredita-se que o autor do crime conformou sua personalidade de maneira a incorporar “inclinações” que o arrastam para a prática de atos delituosos. É o indivíduo a que se conferiu a denominação de criminoso nato. Uma vez que haja um padrão de vida que torne censurável o criminoso, o juízo de reprovação que se consubstancia na culpabilidade deve também recair em sua personalidade.

Seguindo essa vertente, destaca-se a obra de Aníbal BRUNO7, para quem a própria personalidade do indivíduo torna inevitável a adaptação do “homem normal” ante sua constituição hereditária e as influências do meio. Mas há os “inajustáveis”, pessoas que fogem aos limites das ações socializadoras e que são subjugadas por formas “estranhas” de constituições humanas.

É sucinta a definição de Luiz Regis PRADO8: “A personalidade é a índole, o caráter do indivíduo”. João MESTIERI9 assume o posicionamento de BRUNO e acrescenta que se deve observar expressivas distorções de caráter, bem como a habitualidade na prática de determinados crimes. Damásio de JESUS10 acentua que a personalidade deve ser entendida como conjunto de qualidades morais do agente que refletem o psíquico do delinqüente, incluindo a periculosidade. Não destoa Julio Fabbrini MIRABETE11 quando postula que, a partir da apreciação da personalidade, registram-se qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, além de sua agressividade e o antagonismo com a ordem social intrínsecos a seu temperamento.

A lição de Gilberto FERREIRA (1998, p. 86)12 merece destaque. Para ele, é o elemento mais importante dos critérios aferidores do grau de reprovabilidade, englobando os antecedentes e a conduta social. O autor entende que a personalidade do agente deve ser objeto de acurada análise pelo magistrado.

Para tanto, José Cirilo de VARGAS (2000, p. 53)13 assevera que não se pode descartar a herança, o meio em que a pessoa nasceu e viveu, o modo como foi educada, os valores que influenciaram em sua formação psicológica. VARGAS não se restringe a apenas delimitar o conceito. Segue sua ilustração acerca da personalidade14:

Existe profunda diferença entre dois adultos nascidos no mesmo dia e criados no mesmo ambiente, mas com uma particularidade: um deles é o patrão, habituado a mandar e a ser obedecido, enquanto que o outro foi criado de maneira subalterna, sempre recebendo e cumprindo ordens. A visão que cada um tem da vida é diferente. O habituado a mandar é mais autoritário, menos compreensivo, mais implacável, mais exigente, mais duro; o outro é humilde, recatado, temeroso de represálias (geralmente inclinam-se a cometer delitos de astúcia e dissimulação).

Seria de grande valia ter acesso à onisciência que VARGAS supostamente atingiu. Não só fixa a personalidade do indivíduo, a partir do status social no qual se situa o sujeito, como ainda consegue prever os tipos de delitos que grupos de pessoas estão dispostos a cometer.

Guilherme de Souza NUCCI15 reconhece os problemas fenomenológicos que se impõem para a fixação da pena. Entretanto, insiste em seguir disciplinadamente os pressupostos da Escola Positiva do Direito Penal. Para NUCCI16, “invadir o âmago do réu, através da análise de sua personalidade, para conhecê-lo melhor, não como mero objeto da aplicação da pena, mas como sujeito de direitos e deveres, enfim como pessoa humana, torna a pena mais justa e sensata no seu quantum e no seu propósito” (grifo aditado). Cuida-se realmente de uma invasão. Ao contrário de FERREIRA17, que ao menos compreende que avaliar a personalidade não é obra fácil e exige noções de psicologia e psiquiatria, além de um processo bem instruído, NUCCI18 simplesmente confia que o juiz não precisa ser um técnico para analisar a personalidade do autor do crime, “bastando seu natural bom senso”. Ao mesmo tempo, admite que não existe julgamento infalível. Enfim, o jurista nada mais faz que creditar conhecimentos extraordinários a um ser humano que, apesar de suscetível a cometer faltas, é plenamente capaz de “invadir o âmago” de alguém com seu “natural bom senso”. De fato, NUCCI retrata a imagem de um semideus, vulgarmente conhecido como juiz.

Nessa trilha, vai se consolidando o entendimento de doutrinadores que oferecem notável contribuição para a projeção da atual prática judicial brasileira.

A impertinência do critério “personalidade do agente” para a fixação da pena

Não se pode ignorar o fato de que a personalidade do agente é levada em conta pelo magistrado e, por vezes, agrava a pena do réu. Considerando-se essa conseqüência e tendo em vista a necessidade de se respeitar direitos mínimos do autor do crime, é que se defende aqui a impertinência da circunstância judicial “personalidade do agente” como critério para a fixação da pena.

“Não há ‘personalidade de criminoso’. Há homens ou mulheres, com ou sem personalidade, que se tornam autores de crimes. Procura-se o homem criminoso e encontra-se o homem mesmo”19.

Roberto LYRA sintetiza com propriedade o ponto de vista que ora se adota, dissonante dos preceitos propugnados pela doutrina positivista do Direito Penal.

Pode-se anotar, com Lola ANIYAR DE CASTRO20, que o delito é uma perspectiva sobre o anti-social que se impôs sobre outras perspectivas, em um dado momento e lugar. Assinala ainda que “mesmo Pinatel, selecionando as características do que ele chama de personalidade criminosa (...) e ao apontar as mesmas características à sociedade atual, está lançando a normalidade da personalidade criminosa, porque afirma também que ela tem traços idênticos à sociedade onde está imersa”.

ANIYAR DE CASTRO21 frisa ainda que ninguém é essencialmente um delinqüente. Além disso, ninguém é delinqüente todos os dias, nos quais a sua conduta e a sua personalidade são semelhantes às cotidianas, lícitas ou não, de muitas outras pessoas. Ser ou não um delinqüente depende muito mais de um contexto social que de uma conformação atávica de um criminoso nato, como querem convencer os doutrinadores positivistas do Direito Penal.

É interessante ressaltar o posicionamento de LYRA22:

Homem criminoso? Mulher criminosa? A antítese – não há crimes, mas criminosos – constituiu avanço sôbre a tese – não há criminosos, mas crimes. É tempo de fixar a síntese – não há criminosos, mas homens. Jurìdicamente, crime é a violação da lei penal. Portanto, criminoso é o violador da lei penal, sem pressuposto, sem discriminação, sem estigma, sem labéu. Não é criminoso, pode vir a estar criminoso.

Realçam-se, a partir do ensinamento de LYRA23, importantes indagações como: Autor de que crime? Personalidade de que criminoso? Se a personalidade causa o comportamento, que é que modela ou altera a personalidade? Em verdade, diz o jurista, ninguém conhece ninguém fora da relação social que produz.

LYRA24 é incisivo quanto a desconstruir a...

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