Intensities, exceptions and violence--the "modernizing" laws of education in Brazil in 1968/Intensidades, excepcionalidades e violencia--as leis "modernizadoras" da educacao no Brasil em 1968.

Autorde Moraes Vieira, Beatriz

Os lirios nao nascem da lei Meu nome e tumulto e escreve-se na pedra.

(Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo")

Moto 1--Um marco de intensidades ou Introducao--A pluralidade dos tempos historicos e o carater da historiografia como mediacao entre passado e presente, cujas releituras de outras experiencias temporais, espaciais e sociais ancoram-se (tambem, mas nao somente) nas situacoes conjunturais vividas pelo estudioso, tem sido tematica bastante discutida pelos historiadores, especialmente aqueles mais atentos as indagacoes acerca do sentido e do modus operandi da historia. Uma data escolhida como marco historico, seja dia, ano ou seculo, nao e uma emanacao per se, mas um conjunto de acontecimentos que aos olhos do observador apresentam um epicentro naquela data, permitindo que se fale em um antes e um depois. Segundo uma expressao benjaminiana, trata-se do signo de uma "constelacao historica", onde se relacionam e organizam antecedentes, condicionantes, desdobramentos. Logo, a data historica e um vertice de acontecimentos que marcam alguma mudanca em meio as continuidades, ou, para usar outra imagem, um rasgo nos fios caoticamente embaralhados do novelo das permanencias e transformacoes nos fluxos dos tempos. Em alguns casos, cabe sublinhar, no vertice ou rasgo afunilam-se muitos eventos, de onde a percepcao, tanto para quem vive quanto para quem observa, de uma pujanca, pulsacao ou vigor excepcionais. Assim 1968.

Entretanto, os estudos que releem essa pulsacao vigorosa e excessiva se farao, como de praxe, conforme as mediacoes intelectuais e sensiveis possibilitadas e limitadas pelo horizonte historico presente. Mas igualmente, em cruzamento com isso, conforme as escolhas politicas de quem estuda e (re)interpreta o passado. Por isso observamos diferentes enfoques nos trabalhos de reflexao realizados nos sucessivos aniversarios de 1968 em diversos paises, embora em praticamente todos esteja presente a intensidade daquele ano (cujas franjas, segundo expressao machadiana, vao de 1967 a 1969, ou decada de 1970 adentro, como no caso da Italia)--, intensidade esta ja destacada por tantos "atores" e autores, dadas as explosoes nas ruas do mundo, em diversas cidades e condicoes, de manifestacoes estudantis, operarias, civis ... religiosas, economicas, politicas, ideologicas, artisticas, culturais e contraculturais, ... revolucionarias e reformistas ... e sua repressao. E por isso, imersos na experiencia historica do Brasil em 2018, nosso foco aqui volta-se para a violencia tambem presente naquela intensidade, mais especificamente a violencia contida na lei, isto e, as leis que regulamentaram a educacao superior e o movimento estudantil brasileiro em 1968.

Nao cabe nos limites deste trabalho uma reflexao aprofundada sobre o conceito e a pratica da violencia em geral, mas vale sublinhar que, diante dos acontecimentos do seculo XX, a questao se tornou crescentemente complexa. Considerada por inumeros autores como uma experiencia de dificil conceitualizacao, apesar de facilmente identificavel por quem a sofre, fisica ou simbolicamente--analogamente ao que diz Sto. Agostinho sobre 0 tempo--, a violencia contem uma dimensao de dano ou destruicao por todos reconhecida (1). Isto que em grandes linhas podemos chamar de uma ampliacao do dano na experiencia historica contemporanea, dado o "progresso" nas tecnologias e estrategias de lesao e destruicao, levou os estudiosos a pensarem diferentes tipos, condicoes e efeitos violentos. Foram incorporados os temas e problemas relativos nao so aos homicidios e as guerras internacionais e civis, mas igualmente a "guerra fria" e "guerras sujas" (2); a insurgencia de guerrilhas rurais e urbanas; aos suicidios cometidos em nome de causas politicas; genocidios e chacinas; feminicidios e abusos sexuais e sexistas de toda ordem; estruturas sociais e politicas violentas em si, para manutencao da ordem segundo interesses e hierarquias; violencia estatal e paraestatal, policial e miliciana; impedimentos ao pleno desenvolvimento das pessoas e comunidades; assentamentos e deslocamentos forcados; fome; criminalizacao da pobreza e dos movimentos sociais; sistemas penitenciarios e politicas de encarceramento que vieram a substituir as politicas sociais no colapso do Estado de Bem-Estar ... Na America Latina, Africa e Asia, receberam novos olhares os processos da colonizacao, do imperialismo, do trafico de escravos, da instituicao de Estados (pluri)nacionais, plurietnicos (qual nao foi?) e oligarquicos, desdobrando-se em disputas por terras, relacoes clientelistas, laborais, sexuais, inter-etnicas marcadas por inumeras formas de opressao, coacao, agressao, selvageria ... Provieram principalmente destes continentes os debates, inspirados sobretudo pelas leituras de Franz Fanon e Aimee Cesaire, sobre a legitimidade da violencia, ou seja, sobre as praticas do Estado colonial- imperialista e o direito de resistencia, a violencia do oprimido em nome da emancipacao, o "efeitobumerangue". Na Europa, os horrores e posteriores debates sobre a II Grande Guerra e o Holocausto puseram a mostra a racionalidade tecno-burocratica da violencia, os efeitos crueis da industria cultural, as feridas de corpos, subjetividades e vidas danificadas. Nos EUA, destacaram-se as discussoes acerca da violencia racial e sexual, bem como dos efeitos da Guerra do Vietnam, onde ficou claro que a guerra extrapola os contornos do monopolio da violencia pelo Estado, conforme o conceito weberiano, e embebe a sociedade com brutalidade, trauma e dor, maculando as pretensas alegrias do consumo. (3)

Tudo isso latejava, hoje sabemos, sob os acontecimentos de 1968, adensando os sentidos das experiencias que ocorriam simultaneamente em diversos paises e continentes. Intensidade evidentemente nao e sinonimo de violencia, embora a violencia seja uma intensidade. Em linhas gerais, os testemunhos e os estudos sobre 1968 associam a nocao de intensidade a experiencia de acao historica coletiva, de se estar concretamente "fazendo a historia", e com isso, a sensacao de vivacidade de quem viveu um "tempo contraido", "sem tempo morto", um "momento 68" repleto de "grandes noites", de "sonhos na rua" e da esperanca de revirar a ordem social mediante um "internacionalismo concreto", e assim realizar "impossiveis" com clarividencia ... o que depois decaiu em "pequenas manhas", foi reprimido ou derrotado--deixando contudo um profundo legado, que ate hoje merece comemoracao e esforcos de compreensao. Tratava-se de um verdadeiro "acontecimento", no sentido forte do termo, marcado pela multiplicidade temporal e espacial dos eventos, sincronicos e concomitantes em diversos lugares do mundo, com conexoes internacionais e especificidades locais, sendo por muitos considerado como nao-categorizavel, passivel de expressao apenas por metaforas, trazendo consideraveis questoes teoricas e metodologicas aos pesquisadores (4).

Mas tanto no curso dos acontecimentos quanto nos debates realizados "em 1968" e posteriormente "sobre 1968" a questao da violencia e tambem fundamental, posta na pauta dos dias por, entre outros, a guerra do Vietnam; o assassinato de Martin Luther King Jr., o movimento dos e contra os Panteras Negras, o Black Power e os Chicanos nos EUA, onde as manifestacoes hippies por "paz e amor" sao a contraface da mesma moeda; as manifestacoes estudantis e operarias na Franca, Alemanha, Espanha e Italia; as tribulacoes da revolucao cultural chinesa; a "Primavera de Praga" e sua repressao na Tchecoslovaquia; os desdobramentos da Guerra dos Seis Dias no Oriente Medio, iniciados em 1967 e ate hoje infindos; o massacre de cerca de 500 estudantes pelo governo mexicano na Praca das Tres Cultural na Cidade do Mexico; estudantes mortos pela policia de governos ditatoriais ou autoritarios na Argentina, Uruguai, Brasil ... Se 1968 foi "o ano que modelou uma geracao", segundo disseminada expressao nos EUA, diferentes tipos e niveis de violencia fazem parte do cimento modelador (5).

No Brasil, a intensidade de 1968 constela-se na convergencia de diversos influxos: do movimento estudantil, operario e contracultural internacional ao advento da Revolucao Cubana e da Nova Esquerda; das ditaduras militares latino-americanas a sua relacao com a politica internacional (especialmente o projeto norte-americano para a America Latina), tendo como um de seus tristes emblemas a morte de Che Guevara em 1967; da violencia de estado atingindo indices de terror ao processo de modernizacao nacionaldesenvolvimentista; das teorias economicas aos instrumentos juridicos envolvidos em tudo isso; passando tambem pelas acoes e reacoes dos movimentos sociais; pelas propostas esteticas de atualizacao cultural e seus embates; pelos estado das artes em todos estes itens ... Em outras palavras, dentro dos vinte anos da ditadura brasileira, o ano de 1968 simboliza o ponto de confluencia de tensoes de diversa ordem, pois ainda que o golpe de Estado date de 1964, os efeitos socio-politico-economico-culturais desses quatro primeiros anos desenrolam-se aos poucos, como ja tem sido suficientemente mostrado.

"Por que 1968? Houve condicoes especiais para aquele ano especial?", pergunta o entrevistador a Vladimir Palmeira, presidente da Uniao Metropolitana de Estudantes (UME), em 1968. "Eu digo que 1968 foi a ultima vaga da luta em defesa da legalidade de 1964", diz ele (Ap. REIS, 1988, p.99). Claro esta que se trata da legalidade do Estado de direito anterior ao golpe, uma vez que depois os atos legislativos ditatoriais foram numerosos, combinando um largo espectro de Atos Institucionais, leis de censura e controle da imprensa e das diversoes publicas, inumeros decretos-lei, incluindo o decreto que permitia ao presidente recorrer a decretos secretos, a Constituicao de 1969, a Lei de Seguranca Nacional, etc. Como discutiremos no proximo item, o periodo que compreende 1967-68 significou uma especie de movimento de respiracao e resistencia dos setores politicamente ativos da sociedade...

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