Interesses empresariais e divergências no processo de construção do Marco Civil da Internet: uma análise crítica a partir de entrevistas de campo

AutorAlexandre Veronese - Gabriel Campos Soares da Fonseca
CargoProfessor Associado da Faculdade de Direito da UnB - Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB
Páginas12-65
Direito, Estado e Sociedade n.59 p. 12 a 65 jul/dez 2021
Interesses empresariais e divergências no
processo de construção do Marco Civil
da Internet: uma análise crítica a partir de
entrevistas de campo1
Business interests and divergences in the enactment process
of the Brazilian internet rights act2: a critical appraisal
based on eldwork interviews
Alexandre Veronese*
Universidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil
Gabriel Campos Soares da Fonseca**
Universidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil
1 Este artigo é resultado do projeto de pesquisa de iniciação científica (PIBIC) desenvolvido
na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), entre os anos de 2017 e de 2018.
O relatório final da pesquisa foi apresentado no 24º Congresso de Iniciação Científica da UnB.
Os autores agradecem ao Decanato de Pós-graduação da UnB pelo fomento financeiro rece-
bido na forma de bolsa acadêmica, a qual foi central na concretização do presente trabalho.
Os autores agradecem a revisão ortográfica e os comentários analíticos de Sophia Guimarães
Franco da Silva.
2 Os autores são cientes de que o “Marco Civil da Internet” possui outras traduções bastante
utilizadas, tais como: Brazilian Internet Civil Rights Framework ou Brazil´s Internet Bill of Rights.
Contudo, a opção por Internet Rights Act se dá na medida em que o termo “lei”, na tradição
romano-germânica, pode ser traduzido ao inglês como act ou como statute. Em suma, o Marco
Civil da Internet seria uma lei setorial e específica (marco, traduzido como act), referindo-se a
direitos subjetivos (rights) aplicáveis à Internet.
*Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB, Pesqusador Associado do Centro de
Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho (Portugal) e do Centro de
Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da UnB, Doutor em Sociologia
pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/
UERJ). E-mail: veronese@ccom.unb.br. Orcid: 0000-0002-2287-1005.
**Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB, Pesqusador Associado do Centro de
Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho (Portugal) e do Centro de
Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da UnB, Doutor em Sociologia
pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/
UERJ). E-mail: veronese@ccom.unb.br. Orcid: 0000-0002-2287-1005.
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Interesses empresariais e divergências no processo de construção do Marco Civil
da Internet: uma análise crítica a partir de entrevistas de campo
1. Introdução
A Internet se tornou uma variável relevante na estrutura democrática in-
terna de diversos países, assim como nas relações internacionais desenvol-
vidas entre eles3. Nesse sentido, a sua ascensão comercial aliada à difusão
das novas tecnologias da informação e da comunicação trouxe perspectivas
ambivalentes para uma nova etapa da sociedade da informação ao redor
do mundo4.
De um lado, esse cenário permitiu avanços positivos, tais como a dimi-
nuição de barreiras temporais e espaciais na comunicação global e a criação
de um ambiente estimulante para o desenvolvimento de empreendimentos
tecnológicos inovadores. De outro lado, esses efeitos positivos vêm acom-
panhados de desafios regulatórios complexos para todas as comunidades
políticas, tais como a preservação da privacidade dos indivíduos frente a
novas tecnologias de vigilância5 e a compatibilização do direito à liberdade
de expressão com a disseminação de desinformação e de discursos odiosos
em grande escala6.
Como consequência, o campo jurídico vem tentando se adaptar a esse
contexto e apresentar respostas aos questionamentos surgidos a partir das
alterações estruturais e dos impactos sociais dele originados7. Seja por via
da publicação de estudos acadêmicos, da formulação de políticas públicas
ou da construção de decisões judiciais, tornou-se imprescindível pensar
em como adequar as mudanças sociais e as inovações tecnológicas trazidas
pela era digital”8 aos preceitos éticos, aos parâmetros jurídicos e aos direi-
tos fundamentais: criando novas categorias jurídicas e/ou enquadrando es-
ses elementos dentro dos institutos e dos preceitos legais já existentes9. Em
suma, o debate jurídico acerca da governança e da regulação da Internet
ganhou suma importância, levantando questionamentos sobre “por que,
3 VERONESE; CAPELA, 2017, p. 42.
4 CASTELLS, 2000, p. 693; WEBSTER, 2014; SERRAGLIO; ZAMBAM, 2016, pp. 131-132.
5 MENDES; FONSECA, 2020.
6 VERONESE; FONSECA, 2018.
7 MURRAY, 2019; REED, 2012.
8 BITTAR, 2019, p. 938.
9 WIENER, 2004; NETTER, 2019.
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Alexandre Veronese
Gabriel Campos Soares da Fonseca
quando e como”10 regular o seu uso. Apesar de notáveis avanços, pode-se
formular duas críticas em relação ao desenvolvimento desses debates ju-
rídicos sobre regulação e governança da Internet desenvolvidos, especial-
mente no âmbito brasileiro.
Em primeiro lugar, tem-se produzido estudos jurídicos demasiada-
mente voltados para o “discurso dogmático e interno” do Direito11 (v.g.
qual a correta interpretação de um dispositivo legal específico12), os quais
frequentemente ignoram ou deixam de lado o próprio processo de cons-
trução dos instrumentos normativos que regulam o espaço virtual anali-
sados13. Em segundo lugar, várias discussões jurídicas sobre o tema têm
reproduzido uma retórica falha” (flawed rhetoric)14, porém muito usual até
mesmo na literatura jurídica sobre o fenômeno da regulação em geral15,
no sentido de que a regulação e a governança da Internet se fundamentam
em três categorias analíticas genéricas e antagônicas: “Estado”, “mercado”
e “sociedade civil”.
Apesar de úteis, não é raro observar a generalização dessas categorias
analíticas, partindo-se do pressuposto de coesão dos atores que as com-
10 BAPTISTA; KELLER, 2016.
11 Esse é o diagnóstico de ZANATTA, 2015, pp. 447-448. É válido ressaltar que foco do texto
desse autor é a construção de modelos regulatórios para a proteção de dados pessoais. No
entanto, no plano geral, o texto chama atenção para a importância de se adotar uma perspectiva
social e jurídica da regulação, em geral, da Internet, com foco nos diversos envolvidos.
12 Ignorando-se, aliás, o que há muito já ressaltou Lawrence Lessig (1999) no sentido de que
os instrumentos normativos e os institutos jurídicos são apenas um dos vetores que regulam a
Internet. Em verdade, eles estão acompanhados de, ao menos, três outros vetores regulatórios:
a autorregulação desempenhada pelo mercado privado, as constrições e normas impostas pela
sociedade, bem como a própria arquitetura tecnológica na qual “code is law”.
13 “[...]as faculdades de direito [...] praticamente ignoram a dimensão política do processo
legislativo em andamento no Brasil [Marco Civil da Internet]. Ignora-se uma das mais impor-
tantes ‘nomogêneses’ (criação de normas jurídicas) da história recente do país” (ZANATTA,
2013, p. 4).
14 “[...]the ensuing debate about Internet Privacy has employed a deeply flawed rhetoric. Most policy
discussions in this area are based around one or more of the following sets of alternatives. First, […]
whether our policies for cyberspace should depend on the market or the State. Second, […] whether
these policies should favor ‘bottom-up’ or ‘top-down’ regulation. […] [T]hird, whether industry self-
regulation is more desirable than a formal legal response by the State. […] Beyond Internet privacy, the
same or similar rhetorical moves are often made in the more general debate about Internet governance”.
SCHWARTZ, 2000, pp. 815-816.
15 Em sentido contrário, essa insuficiência foi trabalhada por Márcio Iório Aranha (2019, pp.
99-147), que, por meio da teoria da regulação responsiva, demonstra a importância de se
abordar e englobar as interseções desses atores e de seus interesses, no seio do fenômeno jurí-
dico-regulatório como um todo.

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