A adoção internacional e a nacionalidade da criança adotada

AutorÂngela Christina Boelhouwer Montagner
Páginas399-420

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1 Introdução

Tema polêmico e controvertido1, a adoção internacional é hoje prática cada vez mais frequente, especialmente envolvendo crianças que vivem em países periféricos, as quais são acolhidas por pessoas residentes em países desenvolvidos, principalmente da Europa e dos Estados Unidos, na busca por concretizar o ideal da convivência familiar.

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Esse tipo de adoção caracteriza-se pela residência habitual de adotantes e adotados em países distintos, estando as partes subordinadas a diferentes soberanias e, por conseguinte, a diferentes sistemas jurídicos. Para aplacar as dificuldades daí decorrentes, foi adotada pela Conferência da Haia, em 1993, a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, a qual conseguiu em boa parte uniformizar os procedimentos específicos da adoção internacional.

No Brasil o tema está regulado pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e pelo Decreto n° 3.087, de 1999, que promulgou a Convenção da Haia sobre adoção, ficando patente o pluralismo de fontes, mas evidenciando-se o diálogo entre todas. Dessa maneira, verifica-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente está em harmonia com a Convenção da Haia no tocante às normas que regem a adoção internacional.

Quanto aos efeitos da sentença constitutiva da adoção internacional, o principal deles é, sem controvérsias, a criação do vínculo de parentesco com a família adotiva e o rompimento dos laços biológicos. Contudo, outro efeito se vislumbra: a atribuição da nacionalidade do país de acolhida para a criança adotada. Porém, por se tratar de matéria constitucional, não foi possível sua inserção expressa no texto da Convenção da Haia. Apesar disso, a compreensão da questão perpassa a própria Convenção, uma vez que prevê, em seu artigo 23-1, que a “adoção certificada em conformidade com a Convenção, pela autoridade competente do Estado onde ocorreu, será reconhecida de pleno direito pelos Estados Contratantes [...]”. Portanto, pode-se inferir a desnecessidade de um novo processo após a chegada da criança no país de acolhida, devendo a sentença ser acatada na sua totalidade.

Nesse contexto é que se estabelecem os objetivos do presente artigo: identificar se a Convenção da Haia sobre adoção vem sendo cumprida, especialmente no tocante aos efeitos da sentença de adoção internacional, e, principalmente, verificar como a questão da nacionalidade da criança adotada vem sendo tratada pelo Brasil e pela Itália, considerando-se que esse é o país que mais adota crianças brasileiras.

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2 A convenção relativa à proteção das crianças e à cooperação em matéria de adoção internacional – Haia

Em 1993, foi acordada, em Haia, a Convenção Relativa à Proteção e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, conhecida como Convenção da Haia. Entende-se desde então, ser a adoção internacional medida excepcional, aplicada apenas de forma subsidiária, depois de esgotadas todas as possibilidades da criança viver em seu país de origem, no seio da sua família biológica ou numa família adotiva nacional.

Esse foi o primeiro instrumento a regular verdadeiramente a adoção internacional, ultrapassando as fronteiras regionais, denotando interesse mundial2. Seu principal objetivo foi estabelecer um sistema de cooperação administrativa e corresponsabilização entre os países de acolhida e de origem da criança. Isso se materializou pela imposição de uma série de obrigações entre os países envolvidos de maneira a assegurar prevalentemente os interesses do infante no processo de adoção como também o reconhecimento das adoções internacionais entre os países contratantes.

Naquele momento em que foi acordada a Convenção da Haia de 1993, fazia-se necessário um instrumento de cooperação internacional capaz de salvaguardar e garantir o cumprimento dos direitos das crianças levadas de seu país de origem por força da adoção internacional, cujo intento parece ter sido em boa parte alcançado.

Essa Convenção dispõe que as adoções internacionais serão controladas em cada país por uma Autoridade Central. No Brasil, ela é representada no âmbito federal pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, de modo a implementar os objetivos traçados pela Convenção, colaborando com o oferecimento de informações sobre a legislação do país de residência do adotante e dando cumprimento aos ditames do instrumento internacional.

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A Convenção da Haia sobre adoção se revelou um importante e necessário instrumento para coibir situações duvidosas que se identificavam em relação às adoções internacionais, tais como subornos, falsificações de registros, coerção dos pais biológicos e lucros de “atravessadores”, tudo isso aliado à ausência quase que total de regulamentação do assunto entre os países envolvidos.3

Regras como a obtenção do consentimento dos genitores, requisitos pessoais e efeitos da adoção foram regulados pela Convenção de 1993, impondo aos Estados-Partes a modernização das suas legislações internas para se adequarem às novas diretrizes, permitindo um tratamento paritário do instituto entre os países de origem e de acolhida, tendo em mira sempre o superior interesse da criança.4

A subsidiariedade da adoção internacional é clara no artigo 4º-b da Convenção, devendo tal medida ser adotada em caráter excepcional e somente após terem sido esgotadas todas as possibilidades de a criança permanecer primeiramente com sua família biológica ou, assim não sendo possível, em outro ambiente familiar em seu próprio país. O escopo do princípio da subsidiariedade é priorizar a permanência dos infantes no seu país de origem “sem privá-los, bruscamente, de conviver com seu idioma, suas tradições, cultura e acarretando o rompimento com suas raízes.”5

O estabelecimento de diretrizes para a averiguação da situação e das condições dos pretensos adotantes, mediante a expedição de certidão de habilitação, bem como a imposição da verificação de que o país de acolhida já autorizou ou irá autorizar a entrada e a residência permanente da criança em seu território são especificações que visam ao bem estar da criança e atendem aos seus superiores interesses.

Quanto aos efeitos da adoção internacional, o artigo 23 estabelece que, tendo transcorrido o processo de adoção nos termos da Convenção da Haia ePage 403 sido homologado pela autoridade competente do país onde tramitou, a sentença constitutiva da adoção internacional deverá ser reconhecida de pleno direito pelos demais Estados Contratantes. Isso importa no reconhecimento da sentença estrangeira, para todos os efeitos, independentemente de homologação pelo poder judiciário do país de acolhida.6

Certo é que essa Convenção tem em mira a transparência dos processos de adoção, os quais deverão ser revestidos da mais expressa legalidade. Esses processos devem permitir que a criança saia de seu país para uma nova pátria, que deverá lhe receber como cidadão, e para o seio de uma nova família que a acolherá e lhe dará afeto, garantindo-lhe o direito fundamental da convivência familiar.

3 A nacionalidade na adoção internacional

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamou a nacionalidade como um direito do ser humano. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, reconheceu esse direito expressamente somente às crianças, nos termos do artigo 24, § 3.7 Ademais, “considerando que a adoção visa à completa integração do adotado no seio da nova família”, é mister a concessão da nacionalidade pelo país de acolhida.8

Como se trata de matéria constitucional, não foi possível tratá-la expressamente no texto da Convenção da Haia sobre adoção. Contudo, para contornar esse impedimento material, foi estabelecido que as sentenças estrangeiras sobre adoção internacional tivessem homologação automática, produzindo imediatamente seus efeitos no país de acolhida da criança, sendo desnecessária a concessão de exequatur, incluindo-se aí a concessão da nacionalidade. Esse é o caso da Espanha, Noruega, Finlândia e Dinamarca, para citar alguns, mas não o é para a totalidade dos países contratantes, dentre os quais a Itália, justamente o país que mais adota no Brasil.

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Segundo Matthias Herdegen, “a nacionalidade serve de fundamento da estreita e especial relação de direitos e deveres entre o Estado e seus nacionais. Os nacionais, em sua totalidade, conformam uma associação de pessoas, a qual vem a constituir o Estado.”9 Partindo-se dessa ideia de nacionalidade, a criança adotada e deslocada para outro país ficará à margem da sociedade, se não for detentora da nacionalidade desse Estado.

Por outro lado, Amilcar de Castro aduz que “nacionalidade é a permanente dependência de uma pessoa a determinado Estado.”10 Ora, nesse sentido, mostrase essencial a atribuição da nacionalidade à criança submetida à adoção internacional, pois, de fato, após deixar o território brasileiro, ela ficará diretamente dependente da proteção do Estado de acolhida. Para o sucesso da adoção é necessária a adaptação da criança à nova família e a sua inserção na sociedade e na cultura do novo país. Ademais, é direito fundamental da criança ter reconhecida sua nacionalidade e, por consequência, conhecer sua identidade cultural, o que, segundo Erik Jayme, repercute nas regras concernentes à adoção internacional.11

Não são raros os posicionamentos que confundem nacionalidade com cidadania, aplicando-se de maneira equivocada os dois termos como sinônimos. Nesse sentido, Florisbal Del´Olmo estabelece que

Cidadania é, pois, o status jurídico de que se vêem investidos aqueles...

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