Intervenção do estado no domínio econômico

AutorAlice Saldanha Villar
Páginas81-106

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1 Considerações Iniciais

A compreensão histórica da relação entre o Estado e a esfera econômica depende do estudo das diferentes ideologias a respeito do papel do Estado na ordem econômica que foram desenvolvidas ao longo do tempo. A seguir, faremos uma investigação histórica das fases do intervencionismo estatal na economia76, que se reflete nos diferentes modelos de Estado, que evoluem juntamente com a sociedade, se adaptando às novas conjunturas da dinâmica social.

Na história da intenção do Estado na economia, destacam-se os seguintes modelos de Estado: absolutista, liberal, social e regulador. Após uma análise da forma de intenvenção do Estado em cada um desses modelos, faremos um breve exame histórico da evolução econômica no Brasil, que culminou no surgimento do Estado Regulador brasileiro.

2 Breve Histórico da Intervenção Estatal no Domínio Econômico

Na história da intervenção estatal na economia, destacam-se os seguintes modelos de Estado:

· Estado absolutista (séculos XV ao XVIII): mercantilismo;

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· Estado liberal (século XIX): liberalismo econômico;

· Estado social (século XX, até o começo da década de 1990): capitalismo temperado keynesiano;

· Estado regulador (momento atual): neoliberalismo.

2. 1 Estado Absolutista - Era do Mercantilismo

O Absolutismo é a teoria política que postula a presença da figura de um soberano que concentra todos os poderes do Estado em suas mãos. O sistema político e administrativo absolutista prevaleceu nos países da Europa, na época do Antigo Regime (séculos XV ao XVIII), sendo marcado por uma intensa intervenção estatal na economia, decorrente do meio da produção mercantilista. O mercantilismo pode ser definido como o conjunto de ideias econômicas pelas quais a riqueza de uma nação decorreria da capacidade de acumulação de metais preciosos (ouro e prata), atraídos pelas exportações e pela restrição das importações. No contexto de produção mercantilista, o Estado tem um papel primordial no desenvolvimento, adotando políticas protecionistas - como barreiras tarifárias e medidas de apoio à exportação -, que caracterizam a forte intervenção do Estado na economia. Tais práticas protecionistas tem como finalidade a formação de fortes Estados-nacionais.

Durante o Absolutismo, prevalecia a ideia de que o soberano se confundia com o Estado, estando os indivíduos na condição de súditos. Este cenário político social acabou por revelar-se como um estado de extrema injustiça social, dando lugar às revoluções burguesas do século XVII na Inglaterra, e depois nos EUA e na França. Nesse ponto, merece destaque a Revolução Francesa (1789-1799), que foi um movimento marcado especialmente pela reivindicação dos direitos de liberdade, igualdade e propriedade privada. Levada a efeito pela burguesia, a Revolução Francesa semeou na Europa uma nova ideologia liberal, dando lugar, posteriormente, ao paradigma do Estado Liberal, que visou limitar o poder do monarca, pasando a considerá-lo como um órgão do Estado, sendo a soberania do povo também um dos elementos do Estado.

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2. 2 Estado Liberal - Era do Liberalismo Econômico

Como decorrência das revoluções burguesas do século XVII - na Inglaterra e depois nos EUA e na França -, surge o Estado de Direito ou Estado Liberal. Na transição do Estado Absolutista para o Estado Liberal de Direito, que ocorre no final do século XVIII e se mantém durante o século XIX, os Estados passam a adotar leis fundamentais ou cartas constitucionais que disciplinavam sua organização política e os direitos dos indivíduos.

Sob o paradigma do Estado Liberal, cabe ao Estado, por meio do Direito Positivo, "garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo".77Como observa Cattoni, na esfera privada reconhecem-se direitos naturais, vida, liberdade e prosperidade. Na esfera pública, convencionam-se direitos perante o Estado e direitos à comunidade estatal: status de membro (nacionalidade), igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segurança pública, direitos políticos etc.78A teoria do liberalismo econômico, cujo pensamento-paradigma é Adam Smith, floresceu no século XVIII e manteve-se acesa durante o século XIX. Ao tratar do papel do Estado, Adam Smith defende que a Economia funciona apartada do Estado, propondo a redução de seu papel e a configuração de um Estado Mínimo. Essa concepção se fundamenta na ideia de que a regulação econômica dos mercados se daria de forma espontânea, por meio das leis econômicas. Assim, se todos os indivíduos pudessem buscar o seu bem individual, haveria uma ordem natural que harmonizaria os interesses decorrentes da atuação espontânea de cada um, o que condiziria ao progresso e à riqueza da nação.79

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O Estado Liberal, baseado nos moldes da teoria do liberalismo econômico, caracterizava-se por um Estado marcadamente não intervencionista, que afastava-se das questões privadas, permitindo a liberdade dos cidadãos. Ao Estado caberiam apenas funções de proteção da propriedade e dos contratos, entre outras essenciais, como emissão de moeda e segurança nacional.

Todavia, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o modelo liberal mostrava-se inapto para materializar a liberdade, a igualdade e a fraternidade, buscadas nos ideais da Revolução Francesa. O modelo de Estado Liberal se mostrava incapaz de combater as desigualdades econômicas do mundo pós-guerra, que exigia urgente intervenção do Estado na Economia, para reconstruir o capitalismo mundial e consertar os estragos econômicos e sociais provocados pela guerra em diversos países.

Essa situação agravou-se ainda mais com o advento da Revolução Industrial na Europa, durante os séculos XVIII e XIX, quando a mecanização dos sistemas de produção culminou em movimentos grevistas e revoltas de trabalhadores, em razão das péssimas condições de trabalho oferecidas. Esses movimentos resultaram em uma maré de sabotagem de máquinas pelos trabalhadores, que ficaram conhecidos como "quebradores de máquinas".

Após a Grande Depressão, também chamada de Crise de 1929, na qual ocorreu a quebra da bolsa de Nova Iorque, e mais ainda após o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a crise do Estado Liberal era evidente, pois o contexto econômico demonstrava que seria necessária uma intensa intervenção estatal para dar conta da crise e retomar o crescimento econômico.80

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2. 3 Estado Social - Era do Capitalismo Temperado Keynesiano

Como reação à crise decorrente da ineficácia do Estado Liberal, instaura-se o chamado Estado Social, que, baseado na teoria keynesiana, propunha a ampliação da intervenção do Estado na ordem econômica. O paradigma do Estado Social era marcado pela implementação de políticas públicas capazes de promover o desenvolvimento socioeconômico, em especial no que diz respeito à prestação estatal de serviços e garantia dos direitos sociais, como habitação, saúde, educação, moradia, lazer, previdência etc.

A doutrina jurídica considera que o modelo de Estado Social foi inaugurado pela Constituição Mexicana de 1917, que, em virtude do reconhecimento e da garantia dos direitos sociais, foi a primeira "a atribuir aos direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as liberdades individuais e os direitos políticos (arts. 5º e 123)".81Depois, foi a vez da Constituição Alemã de 1919 - denominada Constituição de Weimar -, seguida pelas Constituições Espanhola (1931), Portuguesa (1933), Brasileira (1934), Francesa (1946), Italiana (1947) e Suíça (após a revisão de 1949).82Para o cumprimento das atribuições estatais derivadas do modelo de Estado Social, o Estado passa a intervir fortemente na economia, o que culminou no incremento da estrutura administrativa do aparelho estatal, que deveria crescer para abarcar as funções de prestador de serviços, empresário e investidor. Ressalta-se que houve um aumento

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da competência normativa atribuíada ao Estado, abrangendo inclusive normas editadas pelo Poder Executivo.83A intervenção estatal na economia proposta pelo Estado Social se revelou fundamental após as destruições provocadas pela Segunda Guerra Mundial, tornando urgente a reconstrução economica mundial.

No início de 1973, com o advento da primeira crise do petróleo, o modelo intervencionista entrava em crise. A alta do petróleo havia condizido a uma crise econômica marcada pelo desemprego e pela inflação; e o modelo de Estado Social, altamente custoso, revelava-se ineficaz para a recuperação dos efeitos nocivos da crise. Com a segunda crise do petróleo, em 1979, testemunhava-se uma crise global do Estado Social, sendo necessário formular um modelo de estado menos interventivo para recuperar a ordem econômica devastada pelas consecutivas crises do sistema capitalista.

Nesse cenário, mostrava-se necessário recuperar algumas premissas do modelo liberal para a gestão do aparelho estatal. O novo modelo econômico que agora se erguia veio a ser chamado Estado Neoliberal ou Regulador.

2. 4 Surgimento do Estado Regulador - Era do Neoliberalismo

Na década de 1930, surgia a doutrina econômica do Neoliberalismo como uma tentativa de definir uma espécie de "terceira via", capaz de resolver o conflito entre o liberalismo clássico e a economia planificada coletivista.84O modelo econômico neoliberal buscava evitar as falhas econômicas que conduziram à crise de...

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