Introdução

AutorHumberto Lima de Lucena Filho
Ocupação do AutorDoutor em Ciências Jurídicas (Universidade Federal da Paraíba)
Páginas17-23

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Uma das mais robustas demonstrações literárias da premissa jurídica de que os pactos devem ser cumpridos nos termos ajustados e da secular discussão sobre segurança

jurídica habita na obra O mercador de Veneza, de William Shakespeare (1564-1616). Os embates entre o mercador Antônio, o judeu Shylock e Bassânio acerca do pagamento de três mil ducados tomados por empréstimo do agiota Shylock abrigam temas caros à formação e consolidação do Direito. Antônio, que se propõe a ser iador de Bassânio, aceita a proposta de Shylock de ter retirada uma libra de carne, caso o devedor principal não arque com a sua dívida1. Com o inadimplemento, a vida de Antônio é salva pelo argumento de Pórcia, uma rica herdeira e recém-casada com Bassânio, disfarçada de um noviço doutor em Direito chamado Baltasar. A alegação realizada no Tribunal de Veneza, por ocasião do julgamento, é de que a cláusula contratual só autoriza a retirada de carne sem nenhum derramamento de sangue, sob pena de se infringir o pacto avençado e Shylock perder seus bens, nos termos das leis de Veneza.

O cenário proposto pela tragicomédia shakesperiana sugere uma relexão cuja natureza é de complementariedade. Determinados aspectos da vida, da sociedade e da existência humana não têm plena explicação ou sentido se analisados isoladamente ou sem os seus opostos correspondentes. O modelo global contemporâneo, imbricado de complexidades, demanda análises das interligações entre ciência e tecnologia, do diálogo entre o Direito e as demais ciências, restando empoeirados os estudos meramente herméticos da ciência jurídica, que não se divorcia das variadas manifestações de socialidade presentes nos aspectos mais comezinhos da vida humana.

É nesse cenário que emergem as recentes discussões acerca do mundo do trabalho e de suas regulamentações jurídicas. A pós-modernidade presenteou os homens com grandes avanços na ciência, na saúde e na difusão do acesso à informação. A revolução tecnológica transformou o sentido da vida em sociedade e formatou novas modalidades de trabalho e de produção. Isso implicou mudanças céleres e efeitos profundos sobre as relações produtivas e as respectivas consequências sobre a qualidade de vida dos trabalhadores. O presente momento denota uma grave crise estrutural que põe em discussão quais rumos devem ser seguidos para que o direito ao trabalho e o direito do trabalho não caiam na utopia não concretista. Seja qual for o marco sociológico utilizado, a geograia laboral e os dados econômicos conirmam que se vive um tempo de corrida para a eiciência. O caráter humanista dos direitos sociais dá sinais de enfraquecimento e se perde nas estantes da história como uma

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poeira registrada em um passado quando a esperança no trabalho como elemento paciicador e de justiça social poderia conduzir o mundo a tempos melhores. Enquanto estas palavras são lidas, em algum lugar do globo, ocorrem acidentes de trabalho com óbitos, crianças são submetidas a trabalhos forçados, condições ambientais degradantes se proliferam em alguma fábrica no interior da China ou precários alojamentos são erigidos como verdadeiros depósitos de trabalhadores exaustos.

O desaio que diariamente se apresenta ao Direito é o de assegurar condições mínimas de sobrevivência e civilidade a uma massa de pessoas absolutamente marginalizadas da incidência dos direitos humanos. Dentre esse catálogo de direitos tido como fundamentais, o direito do trabalho cuida de regular e de aplicar o direito humano ao trabalho. Encerrado tradicionalmente como uma espécie de direito social, nascido no calor dos enfrentamentos e nas tensões sociais, políticas e econômicas do século XVIII, esse campo de pesquisa tem um inegável viés econômico. Muito embora o Direito Trabalhista tenha como objeto o estudo do contrato de trabalho, seus princípios e sujeitos, certamente o ponto central de análise reside no distinto tratamento por ele concedido à igura das partes contratantes: o empregado e o empregador. O simbolismo jurídico dos sujeitos contratuais guarda consigo duas iguras com interesses, a priori, contrapostos: a atividade empresarial e seus atores econômicos, representada pela livre-iniciativa, com seu maior destinatário — o mercado — e a força produtiva, os trabalhadores. Tal qual não se corta a pele sem o consequencial jorrar do sangue, não é possível compreender adequadamente as contradições e as irritações do subsistema trabalhista sem promover uma ponte de transição, em termos luhmannianos, com o subsistema econômico e os seus consectários lógicos, mesmo que ambos envolvam agentes com distintos, mas não menos legítimos, anseios.

Desde as primeiras manifestações da Revolução Industrial, a igura do trabalho — e sua respectiva tutela jurídica — exerce fundamental importância na construção e na consolidação das sociedades democráticas, de forma que têm ocupado um espaço próprio nas ordens constitucionais e supranacionais como fundamento de valorização do homem e de expansão de sua dignidade. O trabalho é instrumento de democratização da riqueza, agente ativo nos processos de desenvolvimento socioeconômico e um dos fundamentos dos direitos humanos com proteção local e global, razão pela qual tem recebido estudo especíico e...

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