Introdução - Mapeando os 'direitos da cidade

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas19-40

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Ver Nota1

A cidade não é feita de pedras mas de ho-mens.

Marsilio Ficino2

  1. Contrariando a máxima que Henry David Thoreau aceitava com entusiasmo (“O melhor governo é o que governa menos”), não se pode, em absoluto, afirmar que o melhor governo urbano seja o que governa menos, negativa que se aplica nos mais diversos setores sociais. Na verdade, a experiência multissecular demonstra, com clareza, a necessidade de estabelecimento de parâmetros legais, minimamente estáveis, para qualquer tipo de aproveitamento do solo urbano. Tais parâmetros, índices ou medidas significam que o Poder Público pode e deve, em nome do interesse coletivo, moldar a utilização do direito de propriedade sobre o lote (e até mesmo a formação do próprio lote) de modo a que valores socialmente relevantes sejam garantidos em cada unidade imobiliária e, pois, edilícia. A modelação determinada pela lei atinge o uso, a ocupação e a transformação do solo urbano, entendidos todos eles em sentido bastante amplo. O proprietário não é livre para determinar nem o que fazer (decorrência do plano) nem quando fazer (haja vista a sanções sucessivas do art. 182/§ 4º da Constituição Federal em perímetros delimitados pelo mesmo plano urba-

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    nístico) e nem como fazer (as regras técnicas). As faculdades do domínio no espaço urbano são plenas de limitações e condicionamentos.

    À luz do inequívoco poder do Estado sobre o espaço urbano, que é poder de conformar o território, pode-se dizer que o controle começa na própria garantia de solidez da construção – a preocupação para que, no limite, não caia – e acaba por atingir, no Direito Urbanístico, a inserção harmônica da edificação no contexto urbano que integra e com o qual se relaciona. Da solidez caminha-se para adequação urbanística e para a estética arquitetônica. De fato, a intervenção do Poder Público no espaço urbano é multiforme, não só porque a expressão “Poder Público” é genérica e imprecisa (plurívoca) como porque os modos de intervenção são múltiplos e diversos na determinação constante da habitabilidade. Torna-se necessária uma precisão. Mapeando o tema dos “direitos da cidade” – integrantes de um mesmo sistema –, pode-se cogitar de, pelo menos, cinco diferentes modalidades de atuação do Poder Público no ambiente construído, buscando o atingimento de finalidades específicas, ainda que coligadas, no sentido unidirecional da “ciência, política, técnica, arte da habitabilidade humana” (possível conceituação do urbanismo, conforme Fernando Mola de Esteban).

  2. Retomando (e criticando) a definição de Arquitetura como “l’art de construire, disposer et orner les edifices”, observou Charles Blanc em 1867, na sua Gramática das artes do desenho, que “em todo verdadeiro arquiteto coexistem dois homens: um artista e um construtor”. Um vai realizar o que o outro concebeu. Assim, abstraindo-se da estética, a primeira modalidade de controle público sobre a edificação consiste no chamado “direito da construção” ou, entre nós, direito de construir ou ainda regime legal da construção. Não há designação uniforme daquilo que na Itália chama-se de “edilizia”. Veiculado em normas esparsas, de diferentes níveis, trata ele das exigências técnicas do processo edificatório incluindo a organização interna do futuro edifício. Com efeito, o Poder Público pretende garantir, além da solidez – valor milenarmente protegido –, valores importantes como

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    a funcionalidade, o conforto e a salubridade, em benefício direto de moradores e usuários3.

    Desde 1848, com o Public Health Act, as sucessivas leis sanitárias inglesas surgem com este propósito específico de garantir a salubridade no interior das “casas sujas, velhas, em ruínas” (na célebre descrição do centro de Manchester feita por Engels), edificações ocupadas pelos trabalhadores das fábricas, bem como estabelecer novos padrões edilícios. Considerando o interesse do proprietário apenas na renda, a construção das casas de aluguel, destinada aos trabalhadores que afluíam do campo, passava a ser disciplinada pela lei, que, pensando na ventilação, proibia a utilização do porão para habitação (o que era comum dada a ausência de alojamento). Dentre outras medidas como a limpeza urbana e o abastecimento de água, esta lei exigia também que cada edificação nova devesse dispor de latrina e esgoto: quem transgredisse essa obrigação era apenado com multa e o Poder Público poderia obrigar a construção da latrina pelo proprietário4.

    No Brasil, notadamente os chamados “códigos de obras” municipais disciplinam com minúcias o processo de aprovação e execução de quaisquer edificações, considerando a especificidade do uso pretendido, seja público, coletivo ou privado. Uma famosa recomendação da Coroa à Câmara do Rio de Janeiro, datada de 8 de outubro de 1810, já dizia exatamente isso: devia-se estabelecer “uma regra certa e invariável, a fim de se evitar que cada um edifique a seu arbítrio, aonde e como bem lhe parecer”. Esta vedação continua plenamente válida, no sentido dos dois advérbios

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    destacados (local e técnica). O proprietário, assim, não está livre para edificar da forma que quiser, no sentido mais elementar de edifício como abrigo, porque há regras técnicas da atividade edificatória insertas nos códigos de obras ou mesmo nos códigos sanitários, tanto estaduais quanto municipais. Daí questões como a dimensão mínima dos compartimentos, a altura do pé-direito, o desenho das escadas, a inserção das janelas, dentre outras, que normas técnicas também disciplinam.

    Como diz o art. 3º da importante Lei espanhola 38/99, de Ordenação da Edificação (v. Capítulo 9), para garantir a segurança das pessoas, o bem-estar da sociedade e a proteção do ambiente, os edifícios devem ser projetados, construídos, mantidos e conservados de modo que satisfaçam requisitos de segurança, funcionalidade, acessibilidade, que incluem até mesmo a “facilitação de acesso aos serviços postais” (requisito incluído em 2001). A Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT reeditou, em 2013, a NBR 15575 – Edificações Habitacionais que contempla as exigências dos usuários em três dimensões: segurança, habitabilidade e sustentabilidade. Portanto, a questão é afeta à própria estrutura da edificação e aos seus elementos constitutivos, que têm parca disciplina legal aqui: são as chamadas normas edilícias, cuja simplificação o próprio Estatuto da Cidade postula, juntamente com as normas urbanísticas (art. 2º/XV).

    Deve-se registrar que o imperativo da segurança - estrutural, no uso e contra o fogo – nas edificações é muito antigo. Na Bíblia, o Deuteronômio já prescrevia que em casas novas houvesse um parapeito no terraço de cobertura, ou melhor, no eirado (“murum tecti per circuitum”, na Vulgata, 22, 8), para que as pessoas de lá não caíssem. Secularizando o Direito, em Roma, desde a Lei das XII Tábuas (450 a.C.) no período pré-clássico, o Estado já intervinha na edilícia privada e nos conflitos de vizinhança. Posteriormente, tal intervenção se acentuou sobretudo em razão do perigo de incêndio decorrente do uso constante da madeira nos pavimentos superiores dos edifícios (insulae) e da intensa aglomeração em alguns setores da cidade5. A limitação de altura e a necessidade de

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    espaçamento entre os edifícios, então estabelecidas, surgem dessa específica preocupação entremisturada, no segundo caso, de motivos religiosos (v. Tábua Oitava). A altura sofreu variações: Augusto fixou-a em 70 pés romanos, isto é, 21 m, o que possibilitava edificação de 6 a 7 pisos; bem depois, a constituição imperial de Zenão estabelecia que o espaço intercalar entre os edifícios privados – chamado ambitus – era de 12 pés, ou seja, cerca de 3,50 m (no entanto, dada a falta de habitações, as paredes-meias – paries communis – eram frequentes). Tais grandezas não serão muito diferentes das que, por um plexo de motivos, vigoram hoje.

  3. A segunda modalidade de intervenção materializa-se no chamado “direito de vizinhança”, que integra o corpo maior dos direitos reais (arts. 1.277 a 1.313 do Código Civil). Se o direito da construção, nos códigos técnicos, preocupa-se com aspectos internos da construção, os direitos de vizinhança – plurais, contemplados assistematicamente no Código Civil – tratam de prevenir litígios ocorridos em razão da relação da vizinhança e do uso anormal da propriedade (repercussão in alieno). O foco se amplia: não é mais a ordenação estrutural interna mas a relação com alguns outros – com aqueles próximos. Do interior passa-se ao exterior, de dentro para fora; externalizam-se as preocupações ainda que num círculo circunscrito, delimitado. Isto gera obrigações legais (propter rem) de tolerar e de consentir, além de não fazer: a passagem necessária, por força da topografia, das águas pluviais do prédio superior ao inferior, não despejar tais águas dire-tamente sobre o prédio vizinho por intermédio dos beirais, não abrir janelas que devassem o lote contíguo, etc. Como se vê na epígrafe do presente livro, Vitrúvio, ao enfocar as relações interdisciplinares da Arquitetura, já cogitava de tais direitos, afirmando que era tarefa dos arquitetos agir profissionalmente para evitar as possíveis controvérsias entre os proprietários lindeiros.

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    Na verdade, o Código Civil procura evitar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde no que tange ao projeto edilício e ao uso das propriedades imobiliárias (art. 1.277). Portando, consagra direitos que disciplinam os efeitos externos das faculdades dominiais, impondo limitações ao aproveitamento do lote para pré-compor os conflitos de vizinhança, que são bastante frequentes porquanto derivados da concreta proximidade6. Em Economia, o tema é estudado como externalidade negativa, buscando, então, a lei impedir transferência de custos a terceiros, ou seja, os vizinhos, proprietários ou não. Lembre-se que o termo “vizinho” deriva do latim vicus = bairro, rua, agrupamento de casas; daí o “visitar-se...

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