Que é isto, a enorma? Elementos para a teoria geral do edireito

AutorCláudio Brandão
Páginas23-52

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Introdução

O título deste estudo remete ao espaço das categorias1 e dos conceitos2, onde várias ciências e a filosofia jurídica se ajudam para evidenciar a necessidade de rear-ranjar elementos fundamentais, antigos e emergentes, em nova teia teórica, transdisciplinar, para o Direito.

Não há dúvida sobre o alcance do fenômeno intenso de softwarização que invadiu, nas últimas décadas, todos os setores e sistemas da vida social, inclusive o Direito. O software3 é ferramenta de automação por excelência. Filho das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC), o software é visto, por exemplo, como o veículo da possível concretização dos sonhos mais avançados dos cientistas da inteligência artificial.

O cérebro eletrônico, das décadas de 40 a 60 do século passado, perdeu o nome, esboroou-se contra as parcas possibilidades tecnológicas da época e recolheu-se à sua insignificância frente às possibilidades cerebrais humanas. Agora, os novos poderes do hardware e a evolução do software reacenderam a fogueira dos entusiasmos. Tim Berners-Lee, citado por Pinto e Silva, afirmou que “sempre houve coisas que as pessoas fazem bem e sempre houve coisas que os computadores fazem bem”4. Na atualidade, pode-se dizer que há muitas coisas que só os computadores podem fazer e outras, ainda, que pessoas com computadores fazem melhor. Programas bem elaborados (algoritmos), rodando em computadores velozes e bem equipados, venceram enxadristas campeões, passaram a fazer cálculos em velocidades jamais sonhadas pelos humanos e até andam por aí dirigindo carros sem motorista nas grandes cidades.

Programas que constroem programas qualitativamente superiores a si mesmos e programas que aprendem são a promessa do momento. E tal aprender não se refere ao mero repetir: se A e B e C resolveram o problema assim, então esse é o jeito certo de resolver e deve ser adotado. Ao contrário, dizem os especialistas, chegar-se-á ao nível de inteligência suficiente para engendrar soluções inovadoras.

A engenharia do conhecimento denominou de agentes automatizados5 os programas capazes de orientar uma máquina para operar sem auxílio humano e realizar uma tarefa antes entregue a uma pessoa. A au-

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tomação invadiu tudo, tem roubado empregos e tem permitido a superação de limites em todas as áreas. Não poderia ser diferente com o Direito.

Todas as afirmações anteriores não são vazias. Refletem a realidade que está lá fora impondo renovação teórica em muitas áreas.

O eProcesso é prova cabal da invasão tecnológica, embora se encontre, ainda, num nível bastante primário de automação (apenas fluxos e operações muito simples têm sido entregues às máquinas e seus softwares). Mas, do mundo inteiro, chegam notícias da inexorável automatização de procedimentos envolvendo direitos de todos os tipos. Pleitos de benefícios, por exemplo, garantidos pelo Direito, em muitos países são submetidos a algoritmos (não mais a pessoas) que concedem ou negam, conforme a expressão jurídico-tecnológica de suas estruturas programadas.

No eProcesso, advogados submetem suas petições a agentes automatizados que os identificam e recebem ou não as peças, dando-lhes destinos no âmbito processual, conforme se apresentem em conformidade com as regras programadas que os constituem.

Em tudo isso, há um Direito vivo, em automovimento, autoaplicando-se e norteando a vida das pessoas. Um Direito desconhecido há bem pouco tempo. A noção de que alguém adjudica o Direito, sendo esse alguém um humano, apresenta uma fratura exposta muito clara. Agora, existe a possibilidade de um Direito expresso em termos tecnológicos que, independentemente, se autoaplica a uma situação hipoteticamente concreta, definida como condição da aplicação segundo seus traços dominantes e gerais. Trata-se de agentes automatizados feitos de eNormas, normas tecnológicas ou eletrônicas.

A força condicionadora de tais algoritmos (as eNormas) manifesta-se amplamente no âmbito processual, inclusive para os antigos senhores do processo, os juízes. Nos Estados Unidos, Danielle Keats Citron6 denuncia as alterações de políticas de benefícios, por exemplo, pelos programadores incumbidos da automa-ção do Direito aplicável à espécie, o que demonstra que no caminho entre a lei do legislador e o Direito que se autoaplica deve haver um rito procedimental que exige atenção e cuidados. É clássica, já, a afirmação de Lessig7 sobre o fenômeno condicionador do agir jurídico pela tecnologia: code is law.

Os arautos das ciências da complexidade8 empenham-se para que, no futuro, softwares evoluídos façam mais do que identificar os atores humanos do processo, receber peças, autorizar atos, organizar o fluxo do processo, mostrar peças dos autos, organizar e guardar tudo nos eAutos9, contar prazos e penas ou distribuir as ações observando o princípio do juiz natural. Eles querem softwares que julguem.

Este artigo trata do software já existente, ou pretendido para o futuro, que exprime o Direito que se autoaplica, feito de eNormas, uma espécie nova de norma jurídica, cercada de características que a tornam especial e única e sem a qual não é mais possível teorizar o Direito. O eDireito – normas jurídicas expressas numa forma autoaplicadora, algorítmica – é hoje o complemento ampliador-evolutivo de todos os ramos do Direito.

Heidegger já estabelecia como natural o movimento próprio da ciência frente à mobilidade da realidade que desatualiza os conceitos fundamentais (categorias) com os quais trabalha:

O “movimento” próprio das ciências se desenrola através da revisão mais ou menos radical e invisível para elas próprias dos conceitos fundamentais. O nível de uma ciência deter-mina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais. Nessas crises imanentes da ciência, vacila e se vê abalado o relaciona mento das investigações positivas com as próprias coisas em si mesmas. Hoje em dia, surgem tendências em quase todas as disciplinas no sentido de colocar as pesquisas em novos fundamentos.10 [sem grifo no original]

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Num linguajar muito próximo do adotado por Thomas Kuhn11, o filósofo germânico fala em crise nos conceitos fundamentais porque se quebram os elos da ciência posta com as coisas em si mesmas. Tais fenômenos são a oportunidade para a ciência demonstrar seu nível, empenhando-se para descobrir o que se esconde sob as aparências.

Um roteiro simples orienta a demonstração da tese do presente trabalho (existência de um tipo normativo novo): (i) inicia-se por uma visita a Hans Kelsen para fixar o conceito operacional de norma jurídica. A eNorma é norma no sentido fundamental kelseniano; (ii) Avança-se pela questão da automação para tomar a existência atual da eNorma como axioma, porque evidente; (iii) Parte-se, então, para o esforço de diferenciar a eNorma dentro do conjunto normativo: analisa-se seu modus faciendi, destacando-se, com alguma explicação, os caminhos pelos quais se dá nascimento a uma norma jurídica autoaplicadora (transformação de uma proposição normativa em um programa de computador); vários outros aspectos distintivos e característicos são examinados, como a natureza transdisciplinar (jurídico-tecnológica), a autoaplicabilidade, a pseucontextualidade, a trivialidade, a ininterpretabilidade, a onticidade, a algoritmicidade etc., tudo sob luzes multidisciplinares e com orientação metodológica típica popperiana: falsear a aplicação dos atributos das regras à eNorma;12 (iv) Feito o exame dos atributos, põem-se rápidas sugestões para futuras reflexões sobre os limites e as possibilidades que o Direito automatizado abre para a evolução do jurídico. Destaca-se, também, o desafio posto à Teoria do Direito no tocante à descrição do Direito aumentado pela tecnologia, como, exemplificativamente, as exigências científico-jurídicas para que a nova ex- pressão do Direito se submeta ao caráter radicalmente aberto e transparente da área.

1. Kelsen: norma é sentido de enunciado

Uma remissão a Hans Kelsen é indispensável neste início do trabalho, uma vez que a eNorma é uma norma jurídica, embora diferenciada. Por mais que se tenha evoluído na teoria do Direito13, a noção de norma continua sendo considerada fundamental. Para Niklas Luhmann, “[...] por sobre todo, el concepto de norma en calidad de concepto fundamental es considerado, en la teoría general del derecho, como irrenunciable.”14

No mesmo sentido, Robert Alexy, na sua Teoria dos direitos fundamentais15, afirma que “El concepto de norma es uno de los conceptos básicos de la jurisprudencia, si es que nos es el concepto básico por excelencia de esta ciencia.”16 Crente em que o conceito semântico de norma é o mais adequado “[...] quando se trata de problemas de la dogmática jurídica y de la aplicación del derecho [...]”17, Alexy destaca que o ponto de partida deste conceito é a velha “[...] distinción entre norma y enunciado normativo”18, embora em explicação de rodapé afirme não trabalhar exatamente com a noção de norma kelseniana para, no final da nota, dizer que, abstraindo-se elementos mentais como os ligados à vontade, “[...] parece existir una estrecha relación entre el modelo aqui utilizado y la concepción de Kelsen.”19

Para Alexy, “El hecho de que la...

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