Jacob Burckhardt como teórico do Estado: o esmaecimento de uma obra de arte

AutorPhilippe Oliveira de Almeida - Raul Salvador Blasi Veyl
CargoProfessor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Doutor em Direito pela UFMG, com residência pós-doutoral na UFSC e na UFMG. E-mail: philippeoalmeida@gmail.com - Mestrando em direito pela UFMG. Bacharel pela mesma instituição. E-mail: raulveyl@gmail.com
Páginas221-256
Jacob Burckhardt como teórico do Estado:
o esmaecimento de uma obra de arte
Jacob Burckhardt as a State’s theoretician:
the fade of a work of art
Philippe Oliveira de Almeida*
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
Raul Salvador Blasi Veyl**
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG, Brasil.
1. Introdução
Há, no pensamento do historiador suíço Jacob Burckhardt1 (1818-1897),
uma doutrina do Estado? É esta a questão que procuraremos solucionar no
presente artigo. Burckhardt e Leopold von Ranke (seu mestre) são conside-
rados os dois maiores historiadores produzidos no século XIX pelo mundo
germânico. Porém, a tradição exegética, não raro, os situa em polos opos-
tos da pesquisa historiográfica: Ranke seria o fundador da História Política;
Burckhardt, o pai da História Cultural.
* Professor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Doutor em Direito
pela UFMG, com residência pós-doutoral na UFSC e na UFMG. E-mail: philippeoalmeida@gmail.com
** Mestrando em direito pela UFMG. Bacharel pela mesma instituição. E-mail: raulveyl@gmail.com
1 Burckhardt nasceu e cresceu em um mundo no qual a linguagem dos intelectuais consistia, grosso modo,
no dialeto suábio de Hegel. Contudo, o domínio do Idealismo Absoluto já era objeto de questionamentos,
tanto na filosofia quanto na historiografia. A crítica à proposta de uma filosofia da história mobilizará,
dentre outros, o Ranke, conhecido como o fundador da historiografia positivista. Ranke foi um dos respon-
sáveis pela institucionalização, na universidade, da pesquisa historiográfica, que finalmente conquistava
um estatuto próprio, distinto do ofício dos filósofos e dos artistas. O intelectual alemão é conhecido pela
afirmação segundo a qual a tarefa do historiador é “mostrar aquilo que realmente aconteceu”. É um erro
classificar Ranke como um autor positivista. Cf. DA MATA, 2011; BARROS, 2013.
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O interesse de Burckhardt pelo itinerário das artes no Ocidente – sua
“fuga para a Itália”, isto é, sua dedicação à arquitetura, à pintura e à escul-
tura renascentistas, encaradas como arquétipos para todos os povos – é, no
mais das vezes, descrito como um “esteticismo apolítico”, sinal de repúdio
à idealização do Estado feita por Ranke. Se a “escola prussiana” de História
Política comandada por Ranke parecia estar comprometida com o Reich
(buscando, na investigação do “passado nacional”, meios para legitimar o
Machtstaat de Bismarck), a História Cultural de Burckhardt representaria
uma estratégia escapista para evitar o debate ideológico. Ora, nas últimas
décadas, referida caricatura começou a ser problematizada, à medida que
aspectos políticos e sociais do trabalho de Burckhardt foram recuperados.
Como Felix Gilbert2 salienta: “Para Burckhardt [...] a História Política e a
História Cultural não podem aparecer fortemente separadas”.
Detrator da hiperespecialização na atividade historiográfica, Burckhar-
dt almeja encampar o “ponto de vista da história universal”, uma com-
preensão totalizante, sincrética e sincrônica dos fenômenos humanos (que
abarque, dentre outras coisas, o impacto da cultura sobre as instituições
políticas). Fiel ao legado de Ranke3, Burckhardt concebe a ciência histórica
como um esforço para resgatar o “horizonte mental do passado”, eviden-
ciando a “continuidade espiritual” de nossa civilização e preservando nosso
patrimônio cultural. Nesse sentido, como testemunha da perenidade dos
valores humanos (a despeito de sua mutabilidade), o historiador deve par-
tir de uma visão holística, que não capitule frente a fronteiras disciplinares.
O autor define a barbárie como “ausência de história”. Em suas pa-
lavras4: “O conhecimento do passado é o único que pode fazer o homem
livre do império que, por meio dos símbolos, etc., exercem os usos sociais
sobre ele”5. O conhecimento historiográfico, que pressupõe a compreen-
2 GILBERT, 1988, p. 23. “To Burckhardt [...], political and cultural history cannot have appeared to be sharply
separated”. (Tradução nossa).
3 Na lição de Gilbert (1998, p. 20): “When Burckhardt abandoned theology and decided to study history, he
went to Berlin because Ranke was there”. No obituário que escreveu para si mesmo, já em idade avançada,
Burckhardt reiterará seu respeito pela memória de Ranke, bem como seu compromisso com a compreensão
rankeana da ciência histórica (enquanto reconstituição “do que realmente aconteceu”, a partir das fontes do
período). Como Richard F. Sigurdson (1990, p. 419) pontua: “In Ranke’s conservatism [...] Burckhardt found
a political outlook that was by nature close to his own.”.
4 BRUCKHARDT, 1951, p. 50.
5 BURCKHARDT, 1951, p. 50. “El conocimiento del pasado es lo único que puede hacer al hombre libre del
imperio que, por medio de los símbolos, etc., ejercen sobre el los usos sociales”. (Tradução nossa).
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são de que “o espiritual é mutável, como o social”6 confere ao indivíduo
a prudência, o ceticismo e o distanciamento necessários para que viva de
forma plena.
Revela-se, aqui, a pretensão a uma grelha analítica omniabrangente,
que, como em Herder, Hegel e Marx, seja capaz de evidenciar a interde-
pendência entre território, sociedade, política, lei, religião e arte. Desse
modo, apesar de condenar o aparelhamento do conhecimento historiográ-
fico pelo discurso nacionalista operado pela “escola prussiana” (com seus
“cegos panegíricos da pátria”), Burckhardt jamais abandonou por com-
pleto a História Política rankeana, fagocitada por um olhar mais amplo7.
É essa dimensão que, atualmente, muitos comentadores têm se dedicado
a restaurar. Todavia, tais leituras seguem sendo deveras limitadas. Qual
a opinião de Burckhardt a propósito dos radicalismos políticos do Oito-
centos? Como o autor se posiciona, entre ultramontanos, democratas li-
berais, comunistas e socialistas? Seria um conservador heterodoxo? Um
filomarxista (nascido apenas vinte dias depois do criador do materialis-
mo dialético)? Um aristocrata liberal, tal como quer Alex Khan8? Via de
regra, o estudo da teoria política de Burckhardt adstringe-se aos temas
supramencionados, tal como afirma Richard Sigurdson9, evitando tópicos
mais abrangentes e de maior densidade filosófica – como sua definição de
“Estado”. Nosso paper pretende oferecer uma (singela) contribuição aos
esforços para suprir essa lacuna.
Diversamente do que defende Zygmunt Bauman, a Modernidade Tar-
dia não é líquida, mas sólida. Os Estados soberanos que se desenvolveram
no Ocidente após a Revolução Francesa conseguiram, ao longo dos anos,
garantir posse relativamente pacífica sobre seus domínios (rex in regno suo
est imperator), fixando, com abrangência e profundidade até então impen-
sadas, regras gerais para todas as esferas da vida cotidiana (assuntos de
natureza jurídica, moral, monetária, gramatical etc.). Longe de minarem
tal sistema, as inúmeras guerras nacionalistas travadas no século XX termi-
naram por estabilizá-lo, fazendo com que cada Estado, em seu respectivo
distrito, se tornasse a instância máxima de deliberação. Um dos maiores
6 BURCKHARDT, 1951, p. 50. “lo espiritual es mudable, como lo material”. (Tradução nossa).
7 Sobre a função nacionalista da historiografia produzida no século XIX, v. ALMEIDA, 2008.
8 KHAN, 2001.
9 SIGURDSON, 1990, p. 417.
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