A filosofia constitucional de John Rawls e Jürgen Habermas: um debate sobre as relações entre sistemas de justiça e sistemas de direitos

AutorCecília Caballero Lois
CargoMestre e Doutora pela UFSC. Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Ministra as disciplinas de Fundamentos do Direito Constitucional e Teorias da Justiça e Democracia (mestrado) e Teoria Constitucional (graduação).
Páginas1-17

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Introdução

A idéia de unir sistemas de justiça e sistemas de direitos, pensando os primeiros como fundamento dos segundos é o motor daquilo que foi apropriadamente denominado de Filosofia Constitucional.1 Não se trata exatamente de uma novidade. Desde a publicação de Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (1971), esta questão vem preocupando juristas e filósofos que, sustentados na percepção da impossibilidade de pensar o direito vinculado à tradição positivista, recolocaram as questões em termos substantivos, promovendo um retorno à tradição clássica das preocupações com a ética e a justiça contra o tratamento epistemológico até então dominante. Page 2

Algumas alternativas parecem ter contribuído com maior profundidade para que aquela reunião tenha se mostrado tão próspera, tanto teórica quanto politicamente, especialmente no que tange ao sistema constitucional.

A primeira delas encontra-se na percepção de que aqueles que se dedicam à moderna teoria da justiça não podem dispensar a reflexão sobre qual o modelo institucional que estaria mais apto a consolidar a democracia constitucional numa sociedade notoriamente pluralista e profundamente dividida em inúmeras concepções de bem e de vida boa. Assim, o primeiro movimento para este enlace foi dado pela filosofia política contemporânea.

Com efeito, à obra de Rawls seguiram-se inúmeros trabalhos de autores já bastante conhecidos no Brasil que, de uma forma ou de outra, auxiliaram a construir este debate. É desnecessário, neste momento, apresentar mais detalhadamente Ronald Dworkin, Michael Walzer, Charles Taylor, Jürgen Habermas, entre outros, que se encontram no centro das discussões sobre quais as pautas de justiça que deveriam guiar a distribuição de bens e direitos num determinado Estado. Deve-se resguardar a esfera privada de qualquer opção substantiva ou impregnar o Estado de concepções moralmente situadas? Ainda é possível pensar na universalidade dos direitos humanos ou é inevitável particularizar as concepções de bem e vida boa? A resposta a estas questões, que envolve questões ontológicas e de promoção,2 polariza o debate entre liberais e comunitários e oferece diversas justificações para o processo de criação de sistemas de direitos como ato de um povo soberanamente organizado numa República.

Um segundo movimento na construção da filosofia constitucional parte da teoria do direito, seguido pelos debates em torno da Constituição. Sem dúvida, foi a tão falada e proclamada crise do positivismo jurídico que abriu caminho para se repensar que direito poderia (estaria apto a) regular uma sociedade que já não cabia mais nos seus contornos normativos e que, portanto, precisava de revisão. Retoma-se, então, no final do século XX, a filosofia do direito, que havia sido suplantada no início desse mesmo século, quando as reflexões sobre o direito passam a ser sobre a ciência do direito e a linguagem que o constitui, por considerar a filosofia carente de cientificidade e rigor. A superação do positivismo implicava, contudo, em (re)pensar a fundamentação das normas de um determinado ordenamento jurídico e, dessa forma, vinculá-lo a questões de política, moral e direito sem, entretanto, desprezar uma análise racional do problema. Assim, a filosofia normativa pós década de 70 mostra-se como um caminho próspero a ser seguido. Page 3

No que toca especificamente à teoria constitucional, trata-se de perceber que a prática constitucional é notoriamente marcada por um déficit em torno da aplicação da Constituição. Essa carência é, antes de mais nada, uma carência da teoria que sustenta a prática. Assim, mesmo que não se desconheça a dimensão essencialmente pragmática de alguns dilemas que o constitucionalismo atravessa, não se pode deixar de reconhecer que o caminho para solucionar a maioria desses impasses passa por uma elaboração mais sistemática, de cunho interdisciplinar. Tem-se aqui, portanto, o movimento inverso. É a teoria constitucional que vai buscar a filosofia política, especialmente o que se chama de moderna teoria da justiça.

1. Filosofia Constitucional: objeto e alcance

Há três eixos de análise possível: a) aproximação conceitual: existência de um arcabouço teórico comum entre os fundamentos da teoria constitucional e os pressupostos epistemológicos da teoria da justiça; b) objetivos e finalidades: centralidade da Constituição, preocupação com a limitação do poder político e com os direitos fundamentais e, acima de tudo, a busca constante pela construção de uma democracia constitucional; e c) o liberalismo renovado: irá permitir uma continuidade do discurso liberal e, ao mesmo tempo, a sua renovação devido às características singulares do tema.

Em relação ao primeiro eixo, pode-se afirmar que tanto uma quanto a outra têm início já na Antigüidade quando filósofos como Platão, Aristóteles ou ainda o jurista romano Cícero preocuparam-se em determinar qual a forma mais adequada, por justa, de regular um Estado. Nesse período, as reflexões sobre a Constituição e a justiça encontravam-se estreitamente ligadas, formando um corpo teórico que costuma denominar-se de pensamento constitucional. Algo semelhante ocorre durante a idade média e o início da moderna, porém é com o contratualismo que se pode afirmar que o vínculo entre as duas torna-se inexorável.

Embora seja legítimo afirmar que a origem do positivismo também se encontra no contratualismo moderno, é da necessidade de justificar racionalmente escolhas políticas e morais - questão central para o jusnaturalismo da época - que resulta a filosofia constitucional. E é justamente no contratualismo que Rawls vai buscar a fundamentação de uma moderna teoria da justiça. Diz o autor: meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no Page 4 contrato original como contrato que introduz uma sociedade particular ou estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. 3

Ainda que o desenvolvimento teórico das contendas sobre a justiça abandone a idéia do contrato ou a submetam a uma gama imensa de críticas, da mesma forma como irá ocorrer na teoria constitucional, a questão das fontes legitimadoras será o núcleo em torno do qual gravita a filosofia constitucional.

Além de uma estrutura teórica coincidente, teoria da justiça e teoria constitucional têm objetivos e preocupações comuns. A primeira centra-se no pluralismo como ponto de partida e levanta a possibilidade que instituições políticas e jurídicas têm de enfrentá-lo publicamente. É nesta questão que se fundam as mais importantes disputas teóricas, ou seja, quando se discute que modelo de pautas normativas - concepção de justiça - enfrenta e responde melhor às demandas de uma sociedade plural.4 Independentemente de que concepção se esteja tratando, é necessário acoplar-lhe um sistema de direitos que viabilize esse modelo de distribuição justo de bens e direitos.

Estabelecer qual a melhor forma de assegurar esse sistema de direitos fundamentais na Constituição de um Estado é uma tarefa da filosofia constitucional. De fato, quando assume esses desafios para si, demonstra que estaria apta a oferecer uma normatização jurídica para as demandas da justiça (ainda que isso pareça uma contradição em termos), e oferecer uma sistematização teórica de determinados princípios e institutos constitucionais. Portanto, ao ser compreendida como uma instância de análise e reflexão sobre as relações entre Constituição, Estado e Sistemas de Justiça, traz para seu epicentro a procura da consolidação de uma democracia constitucional, considerando-a a única forma de garantir a igualdade na diversidade.

Finalmente, há que se esclarecer que a filosofia constitucional é resultado de um liberalismo renovado. Trata-se de um liberalismo que se centra, principalmente, na diferença entre a construção da moralidade privada e da moralidade pública, dando grande ênfase à última. Sem abandonar a idéia que move o pensamento liberal, a prioridade da escolha individual, o liberalismo contemporâneo preocupa-se com as regras que norteiam as ações coletivas. Estas devem primar pela igual consideração e respeito a cada indivíduo, este sendo Page 5 entendido como um ser particular e distinto dos outros em suas crenças, valores, moral, enfim, entre as inúmeras questões que separam uns dos outros. Daí que "boa parte da teoria democrática contemporânea tem procurado desenhar procedimentos e regras que permitam resolver ou pelo menos formular com clareza controvérsias públicas relacionadas com valores morais fundamentais, processuais ou substantivos". 5

É neste ponto, ou seja, a partir das demandas da igualdade que aparece a exigência de neutralidade do Estado, pressuposto tão caro à estrutura do pensamento liberal. Para assegurála, o liberalismo contemporâneo vai focar-se, então, nos procedimentos de deliberação pública, garantindo que as expressões individuais possam compor as pautas normativas de uma sociedade plural, mas que, concomitantemente, possibilitem a construção de uma "agenda mínima" que regule a esfera pública e dificulte a tomada por visões particulares de bem e vida boa do espaço de domínio público. Para que essa agenda possa de fato garantir o pluralismo decorrente da ordem privada é preciso também que ela seja objeto de consenso público. Caso contrário, tornar-se-ia obsoleta.

2. A idéia de justiça...

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