Conciliação e mediação judiciais: em busca de um modo legítimo de pacificação social

AutorMartha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora-MG. Conselheira da ENAMAT, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho e da Escola Judicial do TRT-MG
Páginas303-311

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1. Introdução

A maneira de resolver os conflitos está em plena mutação atualmente. Houve um tempo em que os litígios eram resolvidos por meio da autotutela, quando imperava a vingança privada ou a Lei de Talião (olho por olho, dente por dente). Depois, decidiu-se que o mais adequado seria a justiça imposta pelo Estado e surgiu então a jurisdição. A partir daí, o papel do juiz, como representante do poder estatal, também evoluiu. A teoria geral do processo aponta, por exemplo, as posturas dispositiva e inquisitiva do juiz, em momentos diversos da história e segundo as tradições sociais.1 Na relação processual triangular clássica (juiz, autor e réu), o juiz acaba assumindo o papel de tutor do direito perseguido ou defendido. A relação é desequilibrada, pois é de tutor para tutelado, como se fosse de pai para filho ou de vingador para vítima. Por isso, já se afirmou que as decisões judiciais suscitam, de modo geral, mais do que pacificação social, separação entre as pessoas por ela alcançadas.2

Na justiça "negociada"3, o papel do juiz é outro. Não há imposição de decisão, não há substituição da vontade das partes, mas negociação, ponderação de riscos e análise jurídico-social-econômica do direito alegado e das razões de defesa. Ambas as partes assumem responsabilidade pela decisão encontrada em conjunto com o juiz, de forma, portanto, tripartite. A relação não é mais de pai-filho, tutor-tutelado, vingador-vítima, mas de adulto-adulto, onde é permitida, inclusive, a prática de atos de generosidade, o que é, em regra, impossível de ocorrência na via da decisão judicial.4

Essa solução - resultante de um compromisso formal, onde idealmente há transação - tende, pois, a ser mais legítima, ainda que nem sempre represente a aplicação mais rigorosa da norma legal... Uma ruptura de contrato de trabalho poderá ser, desta forma, não indenizada com pagamento em espécie, mas transformada em cessão de cotas de sociedade, acrescida da disponibilidade de acesso ao cadastro da clientela, por exemplo. A decisão negociada5

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tem, pois, maior vocação a levar em consideração as peculiaridades, especificidades e particularidades de cada caso concreto, em aplicação ao princípio da equidade.

Por outro lado, a conciliação e a mediação podem ser fonte de economia de tempo, de prazos e de despesas processuais. Sentenças estão na origem de recursos e de execuções forçadas, enquanto que acordos têm normalmente cumprimento voluntário, com maior probabilidade de serem espontaneamente efetivados, o que certamente evita maior demora na entrega concreta da prestação jurisdicional. Trata-se de aplicação do conceito de acesso à ordem jurídica justa, efetiva, tempestiva e adequada. De outro ângulo, os juízes poderão se beneficiar de verdadeiro filtro de litigiosidade, dedicando maior tempo para os casos que não são objeto de composição amigável, o que atende ao princípio da busca de maior eficiência da Administração Pública.

Por isso, essa solução cooperativa, consensual e contratual tem sido percebida como mais adequada à satisfação da vocação ideal da jurisdição, que é a de produção de maior coesão e paz sociais. Uma mudança de mentalidade está em curso. Orientado por essa perspectiva, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Resolução n. 125, de 29 de novembro de 2010, que dispõe sobre a "Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências", com o objetivo de estabelecer uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento desses mecanismos consensuais de solução de litígios, com um mínimo de organicidade, qualidade e controle dos atos judiciais nessa matéria. Entre os motivos da Resolução, está inscrito que: a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e pre- venção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças.

Na Europa, a Diretiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, disciplina "certos aspectos da mediação em matéria civil e comercial" e está sendo gradativamente transposta para os ordenamentos jurídicos dos países membros. Portugal já cumpriu essa obrigação, por meio da Lei de 29 de junho de 2009, que modificou o Código de Processo Civil. França e Alemanha, porém, não conseguiram cumprir o prazo imposto pela Diretiva para a transposição, o qual se esgotou em 21 de maio de 2011. O projeto de Lei francês foi depositado no Senado em 22 de setembro de 2010.

Dentre as principais preocupações da Diretiva europeia, estão, de um lado, o fato de que a mediação não deve ser vista como simples meio de "desinchar" os tribunais, mas como um meio próprio de resolução de conflitos6, mais consensual e pacífico, necessariamente voluntário; de outro, a circunstância de que devem ser oferecidas novas garantias aos jurisdicionados, com ênfase na qualidade da mediação, por meio da fixação de um regramento geral, com princípios comuns aos Estados Membros da União. É, enfim, necessário conferir coerência e complementaridade aos diferentes modos de resolução de conflitos individuais.

A propósito, a Diretiva europeia precisa que a mediação não deve criar óbice ao direito do jurisdicionado de recorrer à Justiça, em caso de insucesso ou de delonga no processo da mediação. Por outro lado, a Diretiva elenca, no conceito de matéria civil e comercial, a matéria administrativa, à exceção do ato de autoridade e dos direitos indisponíveis, assim como toda a matéria relativa a estado e capacidade das pessoas, Direito do Trabalho, do consumidor, delegações de serviço público, parcerias.

Naquele mesmo ano de 2008, a França recebeu dois relatórios importantes em matéria de solução alternativa de conflitos. O Rapport Celeridade e Qualidade da Justiça. A mediação: uma outra via, apresentado em fevereiro de 2008, ficou conhecido como Relatório Magendie, porque foi redigido por um grupo de trabalho sob a presidência de Jean-Claude Magendie, Primeiro Presidente da Corte de Apelação de Paris. Nesse relatório, são feitas distinções entre a mediação e alguns institutos similares, como conciliação, transação e negociação. Além disso, fixam-se alguns princípios, como o de que a mediação judicial deve ser sempre voluntária e manter contato com a sociedade civil, daí porque permite soluções criativas e adaptáveis a cada caso, sempre sob o controle do juiz. Isso impõe uma necessidade de estruturação, todavia sem rigidez. Outro princípio é o de que a mediação é um enriquecimento da resposta judicial, não seu substitutivo, razão pela qual deve ser ressaltado seu aspecto qualitativo e não o quantitativo, de

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apenas servir para diminuir o número de processos pendentes de decisão judicial. Isso também advém da confiança que as partes depositam no mediador, o que, por sua vez, é resultado de sua competência, independência e deontologia.7

O segundo relatório é conhecido por Rapport Guinchard, porque realizado por uma comissão presidida por Serge Guinchard, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Paris II. Nesse relatório, apresentado ao Ministério da Justiça em 30 de junho de 2008, foram apresentadas 65 proposições sobre a repartição de competência civil e sobre "dejudiciarizações" em matéria civil e penal. Dentre as proposições do Relatório Guinchard, está a criação de um novo procedimento de solução amigável de litígios, com a assistência de advogados, bem como a institucionalização dos conciliadores de justiça em matéria civil, sob a coordenação de um magistrado. Algumas de suas proposições já foram transformadas em textos legislativos.

Os modos alternativos de solução de conflitos têm suscitado tanto interesse na comunidade jurídica internacional que foi criado o GEMME - Groupement Européen des Magistrats pour la Médiation, atualmente presidido por uma magistrada francesa aposentada que exerce funções de mediadora junto ao Conselho da Europa8. Na esfera internacional mais global, existe a Conférence Internationale de Médiation pour La Justice (CIMJ), criada em 2009, durante o I Congresso do GEMME. A CIMJ permite a adesão não somente de juízes, mas também de magistrados, advogados e professores universitários, desde que especializados em mediação.9

2. Breve conceito e algumas diferenciações

A mediação pode ser compreendida como modo cooperativo de prevenção e de solução amigável de conflitos, pelos próprios interessados, graças ao diálogo facilitado por uma pessoa qualificada, imparcial e independente.

A mediação se diferencia da conciliação, principalmente em virtude de dois fatores: 1) normalmente, a mediação é praticada por uma pessoa, estranha ao Poder Judicial, portanto, remunerada pelas partes10, enquanto que a conciliação, ao contrário, é gratuita, porque desenvolvida pelo próprio juiz; 2) o mediador tem sobretudo o papel de facilitador, de pacificador, de auxiliar das partes na reflexão e na decisão, em busca de uma solução amigável, que emergiria naturalmente, o que pode demorar algum tempo; já na conciliação, o juiz propõe efetivamente soluções às partes e o processo normalmente é mais rápido.

Em seu Teoria Geral do Processo, Cintra, Grinover e Dinamarco já salientaram que: a mediação assemelha-se à conciliação: os interessados utilizam a intermediação de um terceiro, particular, para chegarem à pacificação de seu conflito. Distingue-se dela somente porque a conciliação busca sobretudo o acordo entre as partes, enquanto a mediação objetiva trabalhar o conflito, surgindo o acordo como mera consequência. Trata-se mais de uma diferença de método, mas o resultado acaba sendo...

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