Judicial review, política criminal e direitos humanos

AutorAlessandro José Fernandes de Oliveira
Páginas567-591

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1. Introdução

Tem assumido crescente relevância o debate acerca da incorporação, no sistema jurídico pátrio, das concepções conhecidas por judicial review ou judicialização da política, fruto das mudanças contemporâneas na distribuição de poder político entre os chamados “poderes clássicos da república”. O Brasil e o mundo vêm experimentando a transferência de parte do poder político para os tribunais (BARBOZA; KOZICKI, 2012).

Apesar das inúmeras nomenclaturas e acepções atribuídas ao instituto, como judicial review ou judicialização da política2, estamos nos referindo ao fenômeno e processo crescente de intervenção judicial em esferas original-mente concebidas para os outros poderes políticos, seja mediante o controle da constitucionalidade das normas jurídicas ordinárias, a fortiori, a hermenêutica última sobre a matéria constitucional e sua dinâmica com as leis ditas ordinárias ou infraconstitucionais lato senso (matéria tipicamente legislativa), bem como na esfera de atos da administração pública, mediante posturas muitas vezes identificadas e denominadas como ativismo judicial ou politização do Poder Judiciário (matéria típica do Poder Executivo)3.

Em outros termos, para além da concepção de um Poder Judiciário que realizaria tipicamente as funções judicantes, na solução casuística de conflitos de interesses (pacificação social mediante a aplicação da lei no caso concreto), e atipicamente funções legislativas e administrativas em assunto de interesses internos (teoria das funções típicas e atípicas dos poderes políticos), no sistema concebido com nuances do judicial review, seria atribuído ao judiciário tarefas típicas de outros poderes políticos, legislando, mesmo que por vias oblíquas (controle de constitucionalidade de leis infra-

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constitucionais), ou interferindo, direta ou indiretamente, em políticas públicas, em tese, discricionárias.

Não desconhecemos que alguns autores apresentam uma dimensão um pouco mais restrita do fenômeno, limitando o significado do judicial review ao controle de constitucionalidade de leis, nos modernos regimes constitucionais, retirando do alcance do conceito a intervenção em políticas públicas da administração para os quais utilizam a expressão judicialização da política.

Como as categorias possuem a mesma essência (racionalidade ontológica), no nosso sentir, preferimos, neste breve ensaio, aplicar uma acepção mais ampla, para incluir na noção de judicial review as intervenções judiciais tanto no cenário legislativo quanto do executivo. Ou seja, em ambos os fenômenos políticos, judicial review ou judicialização da política, há uma ampliação das atribuições judicantes na sua gênese, para alcançar atos tipicamente de outras esferas de poder político, tanto em matéria parlamentar (judicial review) quanto da administração pública (Poder Executivo). Inclusive, por opção metodológica, doravante usaremos ambos os termos indistintamente.

Pois bem. A discussão, em essência, emerge como um reflexo dialético da tensão entre constitucionalismo e democracia, na medida em que as principais críticas ao judicial review partem da alegada falta de legitimidade dos órgãos judiciários na “invasão” legiferante e administrativa/executiva, uma vez que seus quadros são preenchidos independentemente de sufrágio popular, bem como suas decisões não consideram, necessariamente, a “opinião pública”, ou por ela não é necessária e politicamente premida. Em termos simples, diferentemente do que ocorre com o membro do parlamento (Poder Legislativo) ou dos principais cargos da administração pública (cúpula do Poder Executivo), os membros do Poder Judiciário não são eleitos em sufrágio universal, tampouco desempenham mandatos temporários ou que os desvinculam, ao menos diretamente, do cenário político partidário.

Excluímos, portanto, da concepção de judicial review, a atividade judicante ordinária, na solução casuística de conflitos de interesse (ou no enfoque liberal que lhe deu origem, na aplicação concreta da vontade da lei), correspondente a gênese do Estado moderno.

De fato, originalmente, por razões históricas, o Judiciário foi concebido para ser o mais limitado possível, como mero “concretizador”, a partir de lides individuais, da vontade do legislador, i. e., aplicar a vontade da lei ao caso concreto, em épocas quando se acreditava na onipotência legislativa em regular exaustivamente todos os setores da vida social.

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Como lembra Barboza ao tratar da Europa continental, cujos sistemas jurídicos nos serviram e nos servem de inspiração (2014, p. 78):

A supremacia do Parlamento e da lei se estabelece como princípio na França pós-revolucionária. O Parlamento passa a representar a vontade soberana e geral da nação e, portanto, não caberia colocar-lhe qualquer limite. Aliado a isso tem-se um Judiciário fraco que se restringe a aplicar a lei (le juge est la bouche de la loi), e que é objeto de desconfiança por parte da população que vê nele uma ligação com o Antigo Regime e uma possibilidade de atuação para restabelecê-lo.

Esse Estado de Direito que tem no Parlamento a representação do poder soberano vai prevalecer na Europa continental até meados do século XX.

Excluímos, também, o chamado controle difuso de constitucionalidade, espraiado em todo o judiciário nacional, ao qual, malgrado lide com a hermenêutica constitucional da legislação ordinária (e complementar), falta, para os fins analíticos a que nos propomos, a generalidade e abstração, elemento que aproximaria a atividade judicante da legislativa como no chamado controle concentrado e outras medidas vinculantes aos demais membros do Judiciário e administração pública, tal como ocorre, verbia gratia, nas ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ação por descumprimento de preceito fundamental, súmulas vinculantes, repercussão geral, apenas para ficar em alguns exemplos.

Dessarte, o judicial review a que fazemos referência para as reflexões que seguem coincide com a atividade judicial (provimentos jurisdicionais) que, direta ou indiretamente, signifique a concretização de atividades tradicionalmente atribuídas aos poderes políticos Executivo e Legislativo, seja mediante a interferência em políticas públicas da administração estatal, determinando posturas executivas ordinariamente cobertas pela discricionariedade da gestão pública (Poder Executivo), seja mediante o controle das normas jurídicas infraconstitucionais (Poder Legislativo), sempre tendo por parâmetro a ordem constitucional estabelecida (constitucionalismo moderno).

Novamente nas palavras de Barboza (2014, p. 88):

Um judicial review elaborado e uma atuação do Poder Judiciário ou Tribunais Constitucionais na interpretação dos direitos humanos implicam que no paradigma constitucional do pós-guerra as Cortes e os Tribunais sejam imbuídos de jurisdição constitucional, atuando, destarte, como guardiões últimos

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dos princípios constitucionais e direitos fundamentais contra as leis e ações do Estado eventualmente incompatíveis com as Cartas Constitucionais.

E mais à frente (BARBOZA, 2014, p. 89):

Esse novo papel dos Tribunais Constitucionais, especialmente com a possibilidade de dar conteúdo aos direitos humanos, reflete em grande expansão de sua autoridade, o que se dará por meio do judicial review.

Além de a expansão do judicial review ter se dado pela revolução dos direitos humanos a partir da segunda metade do século XX, seja por positivações dos direitos humanos nas Constituições, seja pela ratificação de tratados internacionais de direitos humanos, há ainda, recentemente, o movimento de transferência do poder político aos tribunais. Esse movimento é conhecido como judicialização da política. (itálico nosso)

2. Judicial review e legitimidade – constitucionalismo e democracia

Se o judicial review tem assumido um protagonismo ascendente no cenário jurídico, ele se destaca ainda mais no manejo de questões afetas aos direitos humanos ou fundamentais, máxime em matéria de princípios criminais lato sensu, inclusa matéria penal, processual penal e de política criminal.

Neste campo, pela sensibilidade e possibilidade vertical de interferência na vida em sociedade, não há espaço para hermenêuticas que não sejam progressistas ou de preservação irrestrita das conquistas modernas; não há margem para regressões, a não ser que se queiram repetir os erros históricos da sociedade ocidental, especialmente latino-americana.

Em outros termos, se é verdade que o judicial review é uma concepção em que o órgão judiciário competente interfere nas esferas de poder tradicionalmente atribuídas aos demais poderes da república, desempenhando, ainda que de forma indireta e transversa, papéis legislativos e executivos, ou pelo menos interferindo nas órbitas políticas dos demais poderes estatais, em sede de política criminal assume contorno aflitivo na medida em que a conjuntura e estrutura global dos direitos humanos foi concebida a partir de atrocidades, condutas criminosas, praticadas sistematicamente por agentes estatais. Em breve retornaremos ao tema.

No Brasil, não é difícil perceber o protagonismo, em matéria de judicial review, desempenhado pelas cortes superiores, especialmente pelo Supremo

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Tribunal Federal, embora com algumas ressalvas e mediações que logo fare-mos, se comparado com o congênere estadunidense que tem servido de parâ-metro para os estudos da matéria e onde a discussão tem mais se desenvolvido.

Os críticos do judicial review se apegam, basicamente, na carência de legitimidade do Poder Judiciário como instância política para intervenção em políticas públicas e como instância...

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