A judicialização da intolerância religiosa: Um estudo do caso "Edir Macedo"/The judicialization of religious intolerance: A study of the "Edir Macedo" case.

Autordos Santos Júnior, José Elísio

Introdução

A atuação do Poder Judiciário, no Brasil, tem se intensificado há alguns anos em relação a casos que envolvem as religiões de origem africana e alguns casos tornaram-se emblemáticos, como, por exemplo, o caso da mãe Gilda, da legitimação do sacrifício de animais, bem como outros que foram judicializados. Esses e outros casos foram analisados e julgados pelo Poder Judiciário, cada um com suas particularidades. Neste artigo, atentaremos ao caso do Bispo Edir Macedo Bezerra e uma obra de sua autoria, a publicação do livro intitulado "Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?". Através de uma Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal (MPF) pleiteou a não circulação do livro, sustentando que o conteúdo era ofensivo às religiões afro. A obra do Edir Macedo Bezerra corrobora com a perpetuação da demonização das religiões afro e seus cultos, favorecendo, assim, a discriminação e a intolerância religiosa contra esse segmento religioso.

Diante desse fato, o presente trabalho buscou analisar a judicialização dos casos de intolerância às religiões de matriz africana no Brasil, tendo como caso empírico a análise do caso Edir Macedo Bezerra, qual fora julgado pelo Tribunal Regional Federal da 1.a. Região (TRF1), que traz à tona um conflito entre princípios constitucionais. Para tanto, fora realizada uma análise da subjetividade dos julgadores nas suas decisões no que se refere ao caso estudado. Durante o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pela concepção teórico-metodológica de Formação Social, proposta por Milton Santos (1977), por entender ser fundamental analisar os fatos em sua totalidade, haja vista que não acontecem de forma isolada. À vista disso, realizou-se uma análise da literatura pertinente sobre o tema, bem como a análise de peças processuais judiciais dos órgãos e partes envolvidas no caso.

1 -A discriminação contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos no Brasil

Após a invasão dos portugueses ao território brasileiro, o Brasil passou a ter religião oficial, a qual estava entrelaçada ao Estado. De acordo com Simões e Salaroli (2017), o Brasil, através da Lei de Padroado, passou a ser encarado como um Estado Católico, ou seja, confessional. O Estado confessional brasileiro ocasionou problemas ao povo negro, tendo em vista que esse povo, trazido ao Brasil forçadamente pelos portugueses do início do século XVI até a segunda metade do século XIX, trazia suas culturas, religiões, preceitos e características que faziam parte de sua identidade cultural e religiosa (BARANDELA, 2009). Assim, desde a colonização o povo negro fora impedido de manifestar suas crenças nas suas deidades por séculos.

Até o fim da Primeira República, o povo do axé, forma como os afro-religiosos se denominam e são conhecidos, desenvolveram diferentes maneiras para manter as tradições religiosas trazidas do território de origem e mantiveram os cultos as suas divindades africanas, os Orixás, Vonduns e Nnkisis. Dentre as estratégias desenvolvidas por esses povos, consoante Oliveira (2014), umas delas foi o sincretismo religioso e as alianças com o poder político. Ainda, conforme o autor, as estratégias foram necessárias devido as inúmeras infelicidades que o povo do axé sofreu por séculos no Brasil. As religiões de origem africana, consoante Barandela (2009), no Brasil, e até mesmo em outros países, instituíram-se através do sincretismo religioso, principalmente com o catolicismo, visto que o catolicismo era permitido no Brasil. Desta forma, o povo negro à época viveu dois mundos paralelos devido a perseguição da sua religiosidade.

Willeman e Lima (2010), revelam-nos que a partir do advento da República brasileira, momento em que, pelo menos em teoria, foi instituída a liberdade religiosa, foi o período em que mais ocorreu desrespeito aos religiosos de matriz africana.

O Código Criminal de 1830, não criminalizava a prática da feitiçaria, não tendo os legisladores, à época, a necessidade de reprimir os negros escravizados, até quando perdurou a escravidão no Brasil. Porém, após a abolição da escravatura, em 1888 e após a Proclamação da República em 1890, momento em que os negros já eram livres, estes passaram, pelo menos na teoria, a serem sujeitos de igualdade política e constitucional, todavia, nesse mesmo período o Estado passou a criminalizar a prática da feitiçaria por meio do Código Penal de 1890, onde os adeptos das religiões de matriz africanas enquadravam-se (DANTAS, 1988).

A acusação de feitiçaria, em Dantas (1988), não apenas desqualificava social e simbolicamente práticas e crenças correntes entre as camadas populares, sobretudo entre os negros, como também as jogava na ilegalidade, pois o Código Penal incriminava feiticeiro. A acusação assumia assim um caráter coercitivo muito forte, pois se de um lado estigmatizava, de outro permitia o uso do aparato policial do Estado contra os terreiros acusados de centros de feitiçaria, prática ilegal segundo a legislação da época. (OLIVEIRA, 2014, p. 314) O Código Penal de 1940, o qual entrou em vigência no ano de 1942, trouxe a criminalização do exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, charlatanismo e curandeirismo. Salienta-se que, a partir dessa época, não era todo e qualquer espírita, praticante de magia ou curandeiro que estava proibido de praticar e passível de punição, mas sim apenas àqueles que praticassem o mal. Isto é, ao entrar em vigor o Código Penal de 1940, começou a fazer uma distinção entre as condutas mediúnicas, as que praticavam o bem e as que praticavam o mal. Porém, as religiões de origem africana permaneceram com o estigma de fazer o mal, continuando a perseguição e criminalização dos seus adeptos. A partir disso, constata-se que o Estado, por meio dos seus representantes e autoridades, correlacionava os cultos das religiões de matriz africana com o mal, com o charlatanismo, como religião menos evoluída espiritualmente (FERNANDES, 2017).

Portanto, desde o período colonial eurocêntrico encontram-se rastros perversos em relação ao desenvolvimento da liberdade religiosa e das religiões de matriz africana, provocando diversas transformações culturais e religiosas durante séculos, rastros esses que persistem na sociedade contemporânea (REIS; ANDRADE, 2018; ALMEIDA, 2018).

2 - Intolerância religiosa: uma face do racismo?

O racismo no Brasil trata-se de uma consequência da escravidão e do eurocentrismo, pois, mesmo com o fim da escravidão no país, através da Lei Aurea no ano de 1888, a sociedade reproduz um pensamento colonial, podendo ser percebido através das ações dos indivíduos, seja por meio das microagressões (1), bem como através do aparato institucional. Assim, pode-se afirmar que o racismo é resquício da escravidão. Desta forma, nota-se que o período colonial eurocêntrico deixou diversos rastros perversos na civilização dos colonizados, inclusive, ocasionando inúmeras alterações culturais e religiosas desses povos (REIS; ANDRADE, 2018, e ALMEIDA, 2018).

A partir do atual contexto da intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana no Brasil, levando em consideração os inúmeros ataques que seus adeptos sofrem há anos, alvoreceu o debate acerca da denominação para intitular as agressões perpetradas contra essas religiões, tendo em vista que o termo "intolerância religiosa" está sendo incapaz de exprimir a violência sofrida pelo povo do axé.

Segundo Mota (2017), mesmo com o passar do tempo, a violência contra as religiões de origem africana não se ausentou na sociedade, apenas modificou sua forma. Desta maneira, há autores, como, por exemplo, Monsores (2012), Oliveira (2014), Silva Jr. (2007), Fernandes (2017) que se referem a esta violência como racismo religioso, pois não há como desassociar a intolerância religiosa que atinge as religiões oriundas do continente africano, do racismo, visto que os atos discriminatórios de cunho religiosos contra a religião afro estão vinculados com o racismo, uma vez que as religiões de matriz africana sempre foram e continuam sendo vistas como algo insignificante, inferior e coisa do demônio, sendo isso consequência da formação territorial, cultural, social e econômica do Brasil. Portanto, a formação da sociedade brasileira constituiu-se de atritos que perduram até a contemporaneidade, tendo como conflito mais intenso o racial, pela carga de exploração que a população negra sofreu.

[...] pode-se defender o uso do termo "racismo religioso" como o mais adequado para caracterizar as ações de discriminações/intolerância contra as religiões afro-brasileiras, uma vez que [...] a africanidade das práticas vinculadas ao contexto histórico colonial racista são as principais motivações das ações praticadas. (FERNANDES, 2017, p. 132) Consoante Silva e Soares (2015, p. 3), "[...] o processo de aculturamento rompeu a escala do tempo e persiste até os dias de hoje, sob uma prática de repulsa e intolerância àquilo que é 'inferior', negando qualquer valor à cultura de outros povos não inseridos na raça 'branca', com ascendência europeia". Assim, esse processo de aculturamento enraizou de uma forma estrutural que, mesmo passados séculos, persiste, sendo manifestado, dentre algumas formas, através do racismo religioso.

A intolerância religiosa, na modernidade, pode ser compreendida pela não aceitação de algumas religiões por certo indivíduo ou por determinado grupo de religiosos, consequentemente, não considerando a genuinidade das outras religiões, pois, de acordo com Simões e Salaroli (2017), a discriminação religiosa está presente em qualquer ambiente e classe social, onde a perseguição, o menosprezo e a interiorização de determinadas religiões são acompanhadas pela ofensa, seja ela física ou moral.

Almeida (2018) entende a intolerância religiosa como desdobramento de um fenômeno maior, o racismo. O racismo, para Almeida (2018), trata-se de uma ação organizada de discriminação que ocorre de maneira consciente ou inconsciente, discriminação essa que acarreta privilégios e...

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