A judicialização do direito à saude

AutorCaroline Medeiros e Silva
Páginas83-116
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CAPÍTULO 3
A judicialização do
direito à saude
Caroline Medeiros e Silva
1.INTRODUÇÃO
Um dos aspectos que mais chama atenção no âmbito da Justiça Federal hoje
é o crescimento da litigiosidade em matéria de saúde. A razão pode ser ex-
traída da própria Constituição Federal e na forma como o direito e acesso
à saúde foi ali idealizado.
A garantia à saúde é um dos doze direitos sociais previstos no artigo
6º da Magna Carta. A ele foi destinada uma seção inteira no título VIII
da ordem social, mais especificamente no capítulo II da seguridade so-
cial. Sua complexidade advém não apenas da própria administração da
prestação do serviço, centralizada no Sistema Único de Saúde (SUS) com
responsabilidade compartilhada entre União, Estados e Municípios, como
também do caráter programático como a norma foi redigida, genérica e
sempre visando deferir o máximo de direito, porém delegando sua efe-
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REFLEXÕES SOBRE DIREITO E ECONOMIA
tiva implementação ao que viria a ser definido “na forma da lei”.1 À falta
dela, o Judiciário, provocado pela sociedade, que acreditou na concessão
do direito via Magna Carta, pas sou a deferi-lo e, para tal, definir parâme-
tros que caberiam ao Legislativo e, especialmente, ao Executivo deliberar
através de polít icas públicas. Com i sso, estabeleceu-se uma judicialização
generalizada das atividades do poder público em torno da matéria. Os
conflitos e enfrentamentos que se buscou evitar durante os trabalhos da
Constituinte acabaram por se perp etuar em ações judiciais, patrocinadas
pela abertura do texto constitucional.
O presente artigo visa, portanto, exami nar as decisões judiciais sobre o
tema de distribuição de medicamentos, voltando-se para anál ise econômica
do direito mediante uso de instrumentos analíticos e raciocínio econômi-
co para aferição da ef‌iciência na obtenção, por via judicial, do bem maior
traçado na Constituição Federal, qual seja, o acesso à saúde, pelo que passa
o exame da alocação ef‌iciente de recursos públicos em tais programas, e o
impacto que as decisões judiciais têm sobre o orçamento destinado ao se-
tor. O objetivo da análise econômica aqui proposta é, justamente, verif‌icar
a repercussão do intervencionismo judicial sobre o acesso à saúde – e seu
eventual potencial de incentivo à litigiosidade – em comparação às esco-
lhas feitas através de políticas públicas, e se estas têm de fato atuado em
prol de maximizar o bem-estar social, o que, em caso positivo, reduziria
a demanda judicial. A proposta de ponderação de valores que envolvem o
tema – dignidade da pessoa humana, reserva do possível, míni mo existen-
cial, entre outros – a partir de critérios econômicos, que examinam o cu sto
1. Vide, a título de exemplo, os ar tigos 196 e 197, que inauguram o capítu lo destinado à saúde:
“Art. 196. A saúde é direito de to dos e dever do Estado, gara ntido mediante polít icas sociais e
econômicas que v isem à redução do risco de doença e de out ros agravos e ao acesso univers al
e igualitá rio às ações e serviços p ara sua promoção, proteção e recuper ação.
Art. 197. São de relevância pública a s ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Pú blico
dispor, nos termos da lei, so bre sua regulamentação, f‌isca lização e controle, devendo sua exe-
cução ser feita dir etamente ou através de terceiros e, ta mbém, por pessoa física ou juríd ica de
direito privado.”
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A JUDICI ALIZAÇÃO DO DI REITO À SAUDE
das decisões e escolhas públicas, permite alcançar a melhor interpretação
da lei, entendendo por tal aquela que melhor assegura a ratio assendi que
justif‌icou sua criação, sem se afastar dos custos – no sentido econômico –
individuais e sociais que a mesma impõe. Por custos, tem-se não apenas o
aspecto f‌inanceiro, mas também de ef‌iciência na obtenção do direito, e sua
repercussão sobre o aparelho estatal, administr ativo e judiciário. O escopo,
ao f‌im e ao cabo, não é outro que racionalizar tais escolhas e decisões em
matéria de saúde, tornando-as o mais próximo da realidade da sociedade, de
modo a otimizar o acesso ao direito, e evitar consequências involuntária s e
indesejáveis, c omo decisões não cumprida s, desorganização do orç amento
e do aparato estatais, e atendimento individualizado de demandas em de-
trimento e prejuízo de toda coletividade.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA QUESTÃO
EXAMINADA: A JUDICIALIZAÇÃO
DA SAÚDE E SEUS PARÂMETROS
A judicialização da saúde é um reflexo direto da “promessa” constitucional
de universalização dos serviços prestados naquela área. Exemplo disso foi
o fim da restrição à prestação daquele serviço no âmbito público apenas
àqueles que contribuíssem para Previdência Social. Para tanto, foi traça-
da uma complexa rede de financiamento, com competências repartidas
entre os três entes estatais, União, Estado e Município, que dificulta de
tal modo atribuir a responsabilização pelo fornecimento do serviço ou
medicamento. Chegou-se até a criar uma jurisprudência pela qual os três
entes tem legitimidade para integrar o polo passivo de qualquer demanda
que envolva pleitos dessa natureza.2
2. Por todos, vide o enunci ado 43 das Turmas Recursai s da Seção Judiciári a do Rio de Janeiro: “A
União é parte leg ítima nas demandas que v isem assegurar o di reito às prestações do Siste-

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