O Judiciário no Mundo Contemporâneo

AutorEugênio Facchini Neto
Ocupação do AutorJuiz de Direito no RS; Doutor em Direito Comparado (Florença, Itália); Mestre em Direito Civil (USP); Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito, da PUC/RS
Páginas297-328

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SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Razões Político-Estruturais do Aumento da Importância do Judiciário. 2.1 O Constitucionalismo Moderno. 2.2 A Nova Organização do Poder. 2.3 A Crise do Poder Legislativo. 2.4 A Crise da Legislação: As Novas Características Legislativas. 2.5 O Welfare State e seu Reflexo na Função Jurisdicional. 2.6 A Crise do Welfare State: a Globalização e o Neoliberalismo Econômico – o Direito na Pós-Modernidade. 2.7 O Problema do Controle do Poder. 2.8 A Função Promocional do Novo Direito.
2.9 A Idéia de Democracia Participativa: o Papel do Judiciário. 2.10 A Necessidade de Proteger as Minorias. 2.11 A Proteção dos Direitos Fundamentais. 2.12 As Novas Funções do Judiciário. 3 Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

1 Introdução 1 Introdução1 Introdução 1 Introdução1 Introdução

Um fenômeno comum a todas as democracias avançadas é a expansão crescente do papel da jurisdição. Trata-se de um fenômeno conexo à expansão do papel do Direito enquanto técnica de regulação dos poderes públicos, em razão do aumento da complexidade dos sistemas políticos.

O fenômeno é complexo e envolve uma extensa rede de explicações. Algumas delas são de ordem científico-culturais, tais como a superação do legalismo positivista, que identificava no legislador a verdadeira locomotiva do Direito, vendo no Juiz a figura montesquiana de mera “boca da lei” (bouche de la loi), A crise da teoria das fontes acabou repercutindo enormemente na jurisdição, percebendo-se a inafastável criatividade do momento jurisprudencial da interpretação e aplicação da lei.

Outras razões são de natureza por assim dizer sociológica, em virtude de uma maior diversidade da extração social da magistratura, espelho de uma sociedade mais pluralista, ao contrário de um passado em que os

* Juiz de Direito no RS; Doutor em Direito Comparado (Florença, Itália); Mestre em Direito Civil

(USP); Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito, da PUC/RS; Professor e Ex-Diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS.

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integrantes do Judiciário eram praticamente todos integrantes das classes social mais elevadas e que, por isso, compartilhavam os valores caros à manutenção da ordem estabelecida. Os juízes de hoje começam a ensaiar a possibilidade de serem porta-vozes não só da segurança dos que já têm, mas também da esperança dos muitos que ainda não têm, e que vêem no Judiciário uma possibilidade de acesso a certos direitos a prestações do Estado, enquanto cidadãos, e de fazer respeitar, pela sociedade, sua dignidade enquanto seres humanos.

Além dessas, existem algumas razões que poderíamos denominar de político-estruturais. É delas que trata esse despretensioso ensaio, que de original tem apenas o fato de que procuramos condensar, sob esse rótulo, certas idéias que se encontram dispersas entre juristas e cientistas sociais, buscando dar uma sistematização a esse fenômeno perceptível do aumento da importância do Poder Judiciário no Estado e na sociedade contemporâneas.

2 Razões Político-Estruturais do Aumento da Importância do
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Indicam-se duas razões fundamentais para esta expansão do papel do Direito e da jurisdição, ambas estruturais e irreversíveis: a mudança da estrutura do sistema jurídico, ocorrida na segunda metade do século XX, com a sua evolução em direção ao Estado constitucional de direito; a mudança da estrutura do sistema político, em razão do desenvolvimento contemporâneo do Estado social, com o incremento da intervenção do Estado na economia e na sociedade1.

Passa-se, agora, a expor, de forma mais articulada, as razões políticoestruturais de tal expansão.

2.1 O Constitucionalismo Moderno
2.1 O Constitucionalismo Moderno2.1 O Constitucionalismo Moderno


2.1 O Constitucionalismo Moderno2.1 O Constitucionalismo Moderno

A primeira revolução na história da modernidade jurídica, aquela realizada com o surgimento do Estado moderno, realizou-se com a afirmação do princípio da legalidade e da onipotência do legislador. Disso decorria a identificação da validade das leis com a sua positividade, ou seja, com a sua emanação pelas formas previstas no ordenamento. “Autorictas non veritas facit legem” (a autoridade, não a verdade, faz as

1 Luigi Ferrajoli, “Giurisdizione e democrazia”, Democrazia e Diritto, 1997, n. 1, p. 285.

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Pois bem: a segunda revolução, ocorrida no segundo pós-guerra, com a difusão das constituições rígidas, equivale a um completamento do Estado de Direito, ou seja, a sujeição ao ordenamento jurídico de todos os poderes, inclusive o legislativo, que também se subordina à constituição, não mais apenas quanto às formas e ao processo de formação das leis, mas também quanto ao seu conteúdo. No Estado constitucional de direito, conseqüentemente, o legislador não é onipotente, no sentido que as leis que ele emana são válidas somente porque produzidas com observância das formas estabelecidas pelas normas sobre sua produção. Sua validade passa a ser condicionada também pela sua compatibilidade com os princípios constitucionais. E não é onipotente nem mesmo a política, cuja relação com o direito se inverte: também a política e a legislação, que é o seu produto, se subordinam ao Direito2.

Como explica Zagrebelsky3, os princípios que contém valores de justiça tornaram-se direito positivo inserido na constituição; portanto, o apelo à justiça ao lado ou contra as regras da lei, não mais pode ser visto como um gesto subversivo ou destrutivo do Direito, sendo, ao contrário, um acontecimento previsto e admitido. Tais princípios consistem essencialmente em “noções de conteúdo variável” e, portanto, revelam uma função essencialmente dinâmica.

O constitucionalismo originário é o constitucionalismo do Estado Liberal burguês, “assente na redução do Estado às tarefas de garantia da liberdade e da segurança, [...] na separação Estado/sociedade, na administração dedicada às tarefas de ordem pública e de polícia, na economia entregue à autoridade do mercado”4. Nas palavras de Comparato, “segundo o modelo do constitucionalismo liberal, não compete ao Estado guiar a sociedade civil para a realização de fins comuns. A grande, senão

2 L. Ferrajoli, op. cit., p. 286-287.

3 Gustavo Zagrebelsky, Il diritto mite, pp. 201/202.

4 Vital Moreira, “O futuro da Constituição”. In: GRAU, Eros Roberto & GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.): Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 314/315.

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única, tarefa estatal consiste em propiciar, sob a égide de leis gerais, constantes e uniformes, condições de segurança – física e jurídica – à vida individual. Compete a cada indivíduo fixar suas finalidades de vida, no respeito às leis asseguradoras de uma convivência harmoniosa de escolhas individuais.”5A mudança de paradigmas somente começa a ocorrer no século XX, com as constituições mexicana (1917) e de Weimar (1919). Nelas, passa-se a disciplinar também a economia e o trabalho. A economia tornouse também uma questão do Estado e conseqüentemente uma questão constitucional. E ao lado dos direitos e liberdade individuais, entraram na Constituição os direitos coletivos e os direitos a prestações do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais). Inicia-se a fase do constitucionalismo conformador da ordem econômica e social, através de regras e princípios orientadores da ação estatal, de programas de ação e políticas públicas. O Estado deixa de ser o único elemento referencial da Constituição, que incorpora agora também a economia e a sociedade6.

Pode-se dizer, com Cappelletti7, que a constituição representa, no Direito moderno, uma forma legalística de superar o legalismo, um retorno ao jusnaturalismo com os instrumentos do positivismo jurídico. A norma constitucional, embora sendo norma positiva, conduz a uma aproximação do direito à justiça. Enquanto norma naturalmente mais genérica, vaga, elástica, ela compreende aqueles conceitos de valor que postulam uma atuação acentuadamente criativa.

Entende-se a mudança da posição do juiz relativamente à lei como produto deste novo paradigma. A sujeição à lei e, sobretudo, à constituição, efetivamente transforma o juiz em gerante dos direitos fundamentais também contra o legislador, através do reconhecimento judicial da invalidade das leis que violam aqueles direitos. Disto tudo deriva que a interpretação judiciária da lei é sempre também um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por estas estabelecidas8.

5 Fábio Konder Comparato. “Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas”. Revista dos Tribunais, v. 737 (1997), pp...

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