A jurisdição constitucional e o processo de convergência entre os sistemas do commom law e do civil law no Brasil

AutorJosé Antonio Dias Toffoli/Daiane Nogueira de Lira
Páginas207-227

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1. Introdução

Apesar de o sistema jurídico do Brasil filiar-se à tradição romano-germânica (civil law), na qual as leis são a fonte essencial do direito, há uma tendência cada vez mais forte de aproximação com sistemas jurídicos fincados na tradição anglo-americana (common law), nos quais, para além dos costumes e das leis, são as decisões tomadas em casos concretos pronunciados pela jurisdição por meio dos precedentes judiciais a principal fonte de direito.

Mauro Cappelleti, em seu estudo sobre os sistemas de controle de constitucionalidade, já destacava esse movimento de aproximação entre o regime constitucional de alguns países europeus com o sistema norte-americano.

É interessante notar que em países de tradição common law, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, é crescente a valorização do direito positivado; em países de legado romano-germânico, tem sido cada vez mais frequente a adoção de institutos com caráter vinculante de origem jurisprudencial, como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse contexto, sobressai a predominância do sistema jurídico norte-americano, uma vez que ele compatibiliza a tradição do common law e a força vinculante dos precedentes judiciais com a supremacia de uma constituição escrita3.

As semelhanças entre os sistemas jurídicos brasileiro e norte-americano remontam às razões pelas quais foram criadas as respectivas cortes supremas4

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e, principalmente, às influências históricas do modelo norte-americano do judicial review no direito brasileiro, as quais contribuíram para a construção do nosso sistema de controle de constitucionalidade.

Conquanto as similitudes também ocorram entre outros formantes dos sistemas políticos dos dois países, como o princípio da separação dos poderes, o regime republicano de governo, o sistema presidencialista e o Estado federativo, nesta oportunidade serão destacados o desenvolvimento do controle judicial de constitucionalidade no Brasil e a forma como instrumentos típicos do common law, em especial o stare decisis, influenciaram na formulação de mecanismos processuais no nosso sistema de jurisdição constitucional, com ênfase nos institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, além de breves apontamentos acerca do novo Código de Processo Civil.

2. O judicial review norte-americano e o stare decisis

Os Estados Unidos, ex-colônia britânica, receberam de herança um sistema jurídico fincado na tradição do common law, mas que se desenvolveu de forma diferenciada, adotando a supremacia de uma constituição escrita sobre o parlamento.

Segundo Cappelletti, houve um resgate pelo direito norte-americano da doutrina jusnaturalista de Edward Coke. Conforme narra o autor, ainda na primeira metade do século XVII, na Inglaterra, Edward Coke já defendia a supremacia do common law (lei das gentes) sobre o statutory law (lei do parlamento), uma vez que a lei não era criada, mas apenas “afirmada ou declarada pela vontade do Soberano”5. Desse modo, o parlamento poderia completar o common law, mas jamais violá-lo. Com base nessa tradição, caberia aos juízes a função de garantir a supremacia do common law contra os arbítrios do soberano e do parlamento6.

A doutrina de Coke foi superada na Inglaterra com a revolução de 1688, passando-se a adotar a supremacia do parlamento – ainda hoje forte naquele país. Todavia, vingaram seus frutos nas colônias inglesas da América7, adotando, por exemplo, os Estados Unidos “a limitação do Parlamento por princípios constitucionais do common law que, por sua vez, estariam representados num documento escrito”8, a Constituição dos Estados Unidos, de 1787.

Com efeito, foi em território norte-americano que surgiram as primeiras constituições escritas e onde se desenvolveu a teoria da supremacia constitu-

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cional. Conquanto a Constituição norte-americana não contasse com previsão expressa do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis9,

Alexander Hamilton, nos artigos federalistas, já defendia a importância dos tribunais na declaração de nulidade de atos legislativos contrários à Constituição, pois “quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis, entra em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes devem ser governados por esta última e não pelas primeiras”10.

Esse mesmo raciocínio, anos depois, em 1803, foi defendido por John Marshall na decisão proferida pela Suprema Corte no caso Marbury vs. Madison, ocasião em que se declarou a inconstitucionalidade de um ato norma-tivo que atribuía competência à Suprema Corte para julgar caso concreto não previsto na Constituição. Essa decisão entrou para a história como o marco inicial da jurisdição constitucional e do controle difuso de constitucionalidade, posteriormente difundidos por outras partes do mundo.

Note-se que o modelo norte-americano do judicial review nasce de uma construção jurisprudencial da Suprema Corte, fundada na noção de que todos os magistrados (controle difuso) têm competência para, ao julgar casos concretos, afastar a aplicação de lei conflitante com a constituição. Nesse contexto, desempenha a Suprema Corte papel fundamental, pois, como órgão de cúpula do Poder Judiciário, detém a última palavra nas questões constitucionais em razão do princípio do stare decisis – instituto típico dos países de tradição commom law –, o qual atribui eficácia vinculante às decisões da Suprema Corte.

Cabe salientar que o sistema de common law assenta-se, primordiamente, na jurisprudência, uma vez que as decisões judiciais, além de resolverem os litígios específicos nos quais foram proferidas, vinculam os magistrados na solução de casos concretos semelhantes, passando a reger, através do stare decisis, as relações futuras. Dessa forma, as decisões judiciais cumprem papel semelhante às leis no sistema romano-germânico, conferindo segurança e coerência ao sistema jurídico.

A vinculação do precedente pode ser vertical ou horizontal. Na vinculação vertical, os juízes e tribunais inferiores devem seguir as decisões dos tribunais superiores, enquanto na horizontal, a própria corte deve seguir seus precedentes. Ademais, somente a ratio decidendi, ou seja, os motivos determinantes da decisão, vincula os magistrados, não alcançando a vinculação os obiter dicta, os fundamentos secundários da decisão, aqueles não necessários para se decidir o caso concreto. De todo modo, é possível distinguir o caso

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analisado do precedente (distinguishing) ou mesmo superá-lo ou alterá-lo, substituindo-o por outro (overruling). Nessas hipóteses, devem os juízes apresentar fundamentadamente os motivos de sua não aplicação ou da mudança realizada.

Não se pode esquecer, todavia, que essa primazia da jurisprudência na construção do direito e a própria doutrina do stare decisis refletem uma tradição de confiabilidade na atuação do Poder Judiciário. Conforme aponta Estefânia Maria de Queiroz Barbosa, diferentemente do civil law, no qual a autoridade da lei está na autoridade de quem a promulgou, no common law a autoridade do direito está em suas origens e em sua geral aceitabilidade por sucessivas gerações. Por essa razão admite-se a autoridade do direito construído jurisprudencialmente.

A jurisprudência tem, desse modo, papel determinante tanto em sua origem quanto em sua evolução.11Nesse contexto, o princípio do stare decisis é instituto essencial e definidor dos sistemas jurídicos do common law, neles enraizado na natural e genuína preocupação de se respeitarem os julgados anteriores, resultante da máxima stare decisis et non quieta movere (manter a decisão e não mover o que está quieto).

3. A evolução do controle de constitucionalidade no Brasil e o protagonismo do STF após a Constituição Federal de 1988

O direito brasileiro, em razão da sua colonização essencialmente portuguesa, tem raiz no direito continental europeu, fundado na tradição do civil law. Nosso sistema jurídico privilegia, em detrimento dos precedentes jurisprudenciais e dos costumes, as leis escritas editadas pelo Poder Legislativo, fontes essenciais do direito.

Essa diferença não impediu, contudo, a influência do modelo norte-americano no constitucionalismo brasileiro, especialmente com o advento do regime republicano no Brasil. No entanto, diferentemente do judicial review norte-americano, a jurisdição constitucional brasileira, até como decorrência do primado da lei, não foi fruto de construção jurisprudencial, mas sim de previsão expressa na Constituição.

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Com efeito, durante o Império, sob a égide da carta de 1824, era atribuição do Poder Legislativo fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, velando ainda pela guarda da Constituição (art. 15). Em nome da separação dos poderes e da supremacia do parlamento, não havia espaço para um sistema de controle judicial de constitucionalidade das leis.

Somente após a proclamação da República – de início, com a criação do Supremo Tribunal Federal, em 1890, pelo Decreto 848, e na sequência, com a promulgação da Constituição de 1891, concebida pelo grande jurista Rui Barbosa, estudioso do sistema jurídico norte-americano – adotou-se no Brasil, com nítida inspiração na Constituição dos Estados Unidos da América, o modelo difuso de controle de constitucionalidade das leis, mediante previsão expressa na Constituição. Dava-se início, a partir de então, à jurisdição constitucional brasileira.

A despeito de o recurso extraordinário ter sido inspirado no writ of error americano, a adoção do modelo difuso de controle de constitucionalidade, sem o mecanismo do stare decisis, ...

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