Jurisprudência do TJ-SP e a revisão judicial dos contratos de locação não residenciais

1. Introdução

O ano de 2020 se iniciou com a propagação, pelo mundo, da pandemia da Covid-19, que tem levado muitos países a decretar, total ou parcialmente, situações de quarentena, isolamento forçado e interrupção de funcionamento de serviços públicos e privados, como medidas supostamente hábeis a conter a propagação do vírus e, assim, reduzir o impacto da pandemia.

No Brasil não foi diferente. Após a decretação de situação de emergência pelo Governo Federal, em 04 de fevereiro de 2020, diversos estados e municípios adotaram medidas mais ou menos restritivas à circulação de pessoas e ao funcionamento de comércios e indústrias, o que tem gerado profundos reflexos econômicos.

É nesse contexto que muitas empresas sem sede própria, por estarem inviabilizadas de funcionar, estão buscando o Poder Judiciário. Atenta à gravidade do problema e à necessidade de respostas céleres, a jurisprudência do TJSP, embora ainda restrita à análise do tema em sede de tutela provisória, já indica algumas diretrizes para a solução dos pedidos de moratória judicial (item 2) e de redução do valor devido a título de aluguéis (item 3). Outrossim, seus julgados apontam algumas especificidades dos litígios envolvendo locação de espaço em shopping center (item 4).

2. Moratória judicial, exceção do contrato não cumprido e aplicação analógica do art. 567 do Código Civil

Além de requererem a revisão judicial do valor locatício, muitos locatários de imóveis não residenciais pleiteiam a suspensão do pagamentos dos aluguéis.

Não obstante a existência de entendimento em sentido contrário, reiterados julgados da Corte Paulista asseveram não caber ao Judiciário conceder moratória, o que dependeria de lei ou de acordo entre as partes.1 Nesse sentido, algumas das decisões ressaltam haver o Congresso Nacional rejeitado a proposta do art. 10 do PL 1.179/2020,2 cujo caput previa que “os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração, poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020”.

De fato, a Lei n. 14.010/2020, originária do referido projeto, não concede moratória em favor de locatários de imóveis urbanos e, por isso, a eventual suspensão do pagamento precisaria de fundamentação em algum dos institutos do Direito Civil. Uma possibilidade seria recorrer à exceção do contrato não cumprido, prevista no art. 476 do Código Civil, segundo o qual, “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. Ocorre, contudo, que a incidência desse dispositivo tem como condição o inadimplemento por parte do locador, o que não se vislumbra no caso.

O art. 22, inc. I, da Lei n. 8.245/1991 determina que o locador está obrigado a “entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se destina”. Portanto, o dever não se limita à simples tradição do bem. A entrega do imóvel se dá “para uso e gozo do locatário”.3 Nessa senda, poder-se-ia argumentar que as proibições de funcionamento, impostas pelo Poder Público aos locatários, inviabilizariam a utilização do imóvel locado, implicando o inadimplemento da referida obrigação. Todavia, a incidência do art. 476 do Código Civil contrariaria a jurisprudência do TJSP e a lógica da distribuição de riscos ínsita ao contrato de locação: a restrição, nesses casos, não foi imposta ao imóvel (um risco que pesaria sobre o locador), mas sim à atividade exercida pelo locatário (um risco a ser assumido pelo próprio inquilino).

A jurisprudência do TJSP tem pontuado essa distinção. Julgados anteriores aos casos da pandemia consideram haver descumprimento da obrigação prevista no art. 22, inc. I, da Lei de Locações se negado o “habite-se” pelo Município ou recusado o certificado de licença do corpo de bombeiros quando da vistoria nos sistemas de segurança contra incêndio e pânico instalados no prédio.4 Entretanto, esse entendimento somente se aplica a problemas relativos ao imóvel em si. Os riscos relacionados à atividade profissional ou empresarial do locatário não devem ser atribuídos ao locador. Nesse sentido, a 35ª Câmara de Direito Privado, em acórdão de relatoria do primeiro autor desta coluna, já decidiu que “eventual irregularidade do imóvel junto ao Poder Público quanto à autorização para funcionamento de comércio não é pretexto para o não pagamento dos alugueres e encargos estipulados em contrato de locação”.5 Na mesma linha, a 29ª Câmara de Direito Privado entendeu que o locatário “não se exonera de previamente verificar a viabilidade do exercício da atividade econômica no local”.6

Com maior razão, o risco de uma superveniente proibição temporária do comércio deve ser atribuído a quem o exerce, não a quem cede o uso do imóvel para que ele o faça, pois o contrato de locação não transfere ao proprietário do bem os riscos da atividade exercida pelo locatário. Desse modo, não possuindo o locador nenhuma responsabilidade quanto à ingerência do Poder Público nas atividades econômicas ou profissionais do...

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