Os juros monetários na história do Brasil

AutorGlauber Moreno Talavera
Ocupação do AutorExecutivo corporativo em São Paulo; Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP
Páginas69-100

Page 69

As Ordenações Afonsinas, tidas como a primeira compilação de leis oficial do século XV, que vigoraram com pouca ou nenhuma relevância no Brasil no período do descobrimento eram divididas em cinco livros, provavelmente pela inspiração e intenção de D. João I em partilhar do paradigma normativo sacrossanto da época. Concluídas em julho de 1446 pelo jurisconsulto Rui Fernandes, que fora instado por D. Duarte I, após a morte de D. João I, a capitanear tal compilação, as Ordenações Afonsinas consolidaram as leis editadas desde o período de regência de D. Afonso II, as resoluções das cortes que remontam a D. Afonso IV, e as concórdias e concordatas1levadas a efeito por D. Dinis, D. Pedro e D. João.

Essas Ordenações, ultimadas sob a regência de D. Pedro, adotaram muitas disposições completas do Corpus Iuris Civilis e do Corpus Iuris Canonici, aproveitando disposições do Código das Sete Partidas,2 que fora redigido pela Chancelaria Real em Castela durante o reinado de Afonso X – o Sábio.

Terminado o árduo trabalho de revisão das normas compiladas, levado a termo por uma comissão revisora composta pelo corregedor

Page 70

de Lisboa, Lopo Vasques, e pelos desembargadores Luis Martins e Fernão Rodrigues, D. Pedro, ciente do longo prazo dispendido desde o termo inicial dos trabalhos de sistematização daquele diploma legal e, consequentemente, da possibilidade de que sua modernidade já tivesse sido exaurida, determinou que:

“(...) as ditas Hordenaçooes e Compilaçom fossem revistas, e examinadas per elle dito Doutor e per o Doutor Lopo Vasques Corregedor da Cidade de Lixboa, e per Luiz Martins, e Fernão Rodrigues do Desembargo do dito Senhor Rey, as quaees per elles forom vistas e examinadas, e em algumas partes reformadas”.3Embora não tivessem a estrutura orgânica dos códigos hodiernos, as Ordenações Afonsinas constituem compilação muito relevante na história do direito português, tendo em vista que sua promulgação, exatamente por reunir todos os diplomas legislativos vigentes à época, dispersos até então, foi um passo decisivo no sentido de facilitar o acesso à legislação e permitir, por via reflexa, uma melhor distribuição de justiça aos jurisdicionados.

Nas Ordenações Afonsinas, a exemplo do que já constava nos Decretais do Papa Gregório IX, havia previsão de coação aos judeus para devolução dos juros monetários demasiadamente elevados por-ventura cobrados dos cristãos. Afora isso, atento à prática daqueles credores que, para legitimar a prática de juros excessivos, entregavam aos devedores quantias menores do que as que convencionavam em contrato, o jurisconsulto Rui Fernandes inseriu nas Ordenações Afonsinas a querela non numerate pecuniae que, inspirada em norma expedida de há muito pelo Imperador romano Caracala, preceituava:

Page 71

“(...) se esse devedor oposer a dita excepçom ante dos sessenta dias, nom seja costrangido a pagar o confessado por elle, salvo se o creedor provar polo Taballiam, e testemunhas, que presentes forom ao contrauto, ou per outro algum modo licito, que realmente e com effeito entregou a esse devedor todo aquello, que per elle foi confessado; e provado assi esto per esse creedor, como dito he, seja logo o devedor costrangido a pagar o contheudo em sua confissom com as custas em tresdobro, pois, maliciosamente letigou, e nom lhe seja recebida em esse Juizo outra defesa alguã, que fóra da escriptura da confissom aja mester próva, pois negou o que razom avia de saber, e lhe veeo provado; e nom ho provando o dito creedor, será costrangido de entregar ao devedor a escriptura da obrigaçom, e fazello livre de seu confesso”.4Outras disposições também rechaçavam a possibilidade de cobrança de juros monetários excessivos, como se depreende das Ordenações Afonsinas, IV, 19:

“Hordenamos, e mandamos, e poemos por Ley, que nom seja nenhuu tam ousado, de qualquer estado e condiçom que seja, que dê ou receba dinheiro, prata, ouro, ou qualquer outra quantidade pesada, medida, ou contada a usura, per que possa aver, ou dar alguã vantagem, assy per via d’emprestido, como de qualquer outro contrauto, de qualquer qualidade natura e condiçom que seja, e de qualquer nome que possa seer chamado. E aquelle, que o contrairo fizer, e ouver de receber gaança algua do dito contrauto, perca todo o principal, que deu, por aver a dita gaança; e aquelle, que ouver de dar a dita gaança, perca outro tanto, como for o principal que recebeo, e seja todo pera a Corôa dos nossos Regnos: e per aqui entendemos, que poderá o contrauto usureiro tam inlicito da nossa terra, e Senhoria seer esquivado”.5

Page 72

Não se tem, todavia, registro da aplicação efetiva das Ordenações Afonsinas no Brasil. Em verdade, nos trinta anos que vão desde o descobrimento por Pedro Álvares Cabral, em 1500,6até a expedição capitaneada por Martim Afonso de Souza, em 1530, não há efetivamente no Brasil questões e relações a serem regidas pela codificação afonsina. Isso porque a euforia do descobrimento logo deu lugar a algum grau de desdém pelas terras descobertas.

No afã de encontrar metais preciosos em seus novos domínios, Portugal colheu frustração. Os primeiros contatos com os nativos também não foram, ao menos no que concerne às perspectivas comerciais, nada alvissareiros. Em terra brasilis, os primeiros portugueses depararam-se com um povo que não representava mercado consumidor dos gêneros portugueses e sequer mercado produtor de itens de algum apelo junto ao mercado europeu, pois a população indígena aqui estabelecida desconhecia o comércio e vivia numa economia eminentemente natural e auto-suficiente.

Em resumo, nesse período o Brasil definitivamente não despertava o interesse português. Com efeito, nesses trinta anos iniciais que os historiadores convencionaram denominar “Período Pré-Colonial”, as atenções da Coroa Portuguesa, norteada pela lógica mercantilista – baseada no trinômio “metalismo,7balança comercial favorável e exploração colonial” –, estiveram centradas na exploração de riquezas encontradas em abundância nas colônias africanas, tais como ouro e marfim.

Page 73

Na lição precisa de Eduardo Bueno:

“Apesar dos exageros e incorreções, a Lettera de Américo Vespúcio para Piero Soderini com certeza continha várias passagens verídicas. Uma delas é o trecho no qual, referindo-se ao final de sua primeira viagem ao Brasil, realizada entre maio de 1501 e julho de 1502, Vespúcio afirma: ‘Nessa costa não vimos coisa de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil (...) e já tendo estado na viagem bem dez meses, e visto que nessa terra não encontrávamos coisa de metal algum, acordamos nos despedirmos dela’. Deve ter sido exatamente esse o teor do relatório que Vespúcio entregou ao rei D. Manoel, em julho de 1502, logo após desembarcar em Lisboa, ao final de sua primeira viagem sob bandeira portuguesa. O diagnóstico de Vespúcio selou o destino do Brasil pelas duas décadas seguintes. Afinal, no mesmo instante em que era informado pelo florentino da inexistência de metais e de especiarias no território descoberto por Cabral, D. Manoel concentrava todos os seus esforços na busca pelas extraordinárias riquezas do Oriente”.8A partir de 1502, com intuito de deflagrar o processo de ocupação do Brasil sem onerar as finanças da coroa portuguesa, D. Manoel implementou uma parceria com endinheirados mercadores portugueses, notadamente os chamados “cristãos novos” – judeus convertidos ao cristianismo em busca de proteção legal para o desenvolvimento de suas atividades mercantis –, formalizada pela celebração de contratos de arrendamento, pelos quais a exploração do território descoberto ficava franqueada aos arrendatários.

A política de incentivo à ocupação territorial de D. Manoel, todavia, não rendeu os frutos esperados. Até 1519, apenas três feitorias haviam sido instaladas no Brasil (em Cabo Frio, Rio de Janeiro e Pernambuco), duas delas em ilhas (ilha de Itamaracá e ilha Compri-

Page 74

da), e tais estabelecimentos administrativos não passavam de depósitos de toras de pau-brasil – produto da extração predatória levada a cabo, modo geral, por legiões de degradados e condenados pela Justiça que por estas plagas aportavam –, que tinham como destino Amsterdã, onde eram reduzidas a pó, comercializadas com franceses e italianos e por eles utilizadas no tingimento de tecidos.

A rusticidade do estilo de vida dos nossos primeiros colonizadores evidencia a falta de substrato fático que ensejasse a aplicação, no Brasil, das disposições referentes à cobrança de juros que integravam as Ordenações Afonsinas. As normativas efetivamente aplicáveis no contexto em que estavam inseridos tais indivíduos versavam sobre aspectos eminentemente prosaicos, embora, em certa medida, pitorescos. Exemplo emblemático foi o regulamento da “Bretoa”,9

que regulava de maneira pormenorizada todos os passos de seus tripulantes, estipulando vedações tais como fazer comércio com os índios, manter relações sexuais com nativas, blasfemar e evadir-se da feitoria, entre outras.

Promulgadas por D. Manuel I, em 1521, após copiosa reforma efetuada pelo Chanceler-Mor Rui Boto, as Ordenações Manuelinas corroboraram grande parte das disposições outrora contidas nas Ordenações Afonsinas, tendo adequado e atualizado muitas normas precedentes. Como justificação à nova compilação, D. Manuel I exprimiu:

“(...) a confusão e repugnância de algumas ordenações por Reis nossos antecessores feitas, assi das que estavam encorporadas como das extravagantes, donde recresciam aos julgadores muitas dúvidas e debates, e às partes seguia grande perda”.10

Page 75

Para remediar esses embaraços determinou:

“(...) reformar estas ordenações e fazer nova compilação, tirando todo o sobejo e supérfluo, e adendo no minguado, suprimindo os defeitos, concordando as contrariedades, declarando o escuro e difícil de maneira que assim dos letrados como de todos se possa bem e perfeitamente entender”.11Concebidas ao tempo da descoberta da imprensa e editadas sob a justificativa de que o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT