Os juros no direito brasileiro

AutorJoáo Luiz Coelho Da Rocha
Páginas73-81

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A - O trato legislativo dos juros

Nao é privilegio do estudioso do Di-reito a percepgao de quanto a idéia e o con-ceito de juros incomodaran! a cultura oci-dental de raízes cristas. Os sociólogos, os economistas, os historiadores também en-contram, no seu aprendizado, as explica-góes para esse fenómeno de rejeigáo.

De um modo simplificado, dada a extrema limitagao destas notas, registre-se que a nossa heranga crista, sobretudo na la-tinidade, de matriz católica e contra-reformista, sempre nutriu urna certa repulsa moral pelos juros, vendo estes como a arma do credor monetario, aquele que, sob tal ótica crítica, vive as expensas do esforzó produtivo alheio.

É significativo notar que o Decreto 22.626, de 1933 (decreto com força de leí, pois editado na constancia do chamado "Governo Provisorio" que sucedeu á Revo-lugao de 1930), ato legislativo que veio fi-xar pela primeira vez regras mais estritas e específicas para o fluxo de juros no país, fícou, até hoje, largamente conhecido como a "Lei da Usura" (como observa alias, Theo-tónio Negráo, no seu Código Civil e Legis-laqao Civil em vigor, 17- ed., Saraiva, p. 705).

A estreita e imediata referencia a idéia de usura no trato da lei, já qualifica o estigma que a imputagáo de juros aos débitos representava junto á cultura socio-jurídica do país.

Nos consideranda daquele Decreto 22.626 lé-se: "Considerando que todas as Iegislaqóes modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os ex-cessos praticados pela usura; Considerando que é de interesse superior da economía do país nao tenha o capital remuneragao exagerada, impedindo o desenvolvimento das classes produtoras".

Fica bem patente, pois, o quáo severo, assentado nessa idéia desabonadora sobre os juros, era o tratamento legal, no Brasil, desse instituto remuneratorio dos mutuos em geral.

Neste passo, a norma preambular (art. I2) e básica do Decreto 22.626, proibia, e mais que isto, acenava formalmente com punicjío, "nos termos desta lei", para a es-tipulacjío de juros "em quaisquer contratos" em taxas superiores ao dobro da taxa legal, esta fixada em 6% ao ano pelo art. 1.062 do Código Civil.

A "puniqáo", severa cominaqao do estatuto em tela, estava no que se denominou

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"delito de usura", tipo criminal fundado nos arts. 13 a 15, depois revogados pelo art. 4a da Lei 1.521/51 subsumindo-se tal enquadramento da estipulagáo abusiva de juros nos ali "criados crimes contra a economía popular".

A ordem jurídica brasileira, pois, vem cuidando com muito zelo, da graduagao e da quantificagáo dos juros, de urna manei-ra tao estrita e intervencionista como aque-1.a deferida a poucos valores do circuito económico, tais como os aluguéis ou pre-gos de remedios, e, nesse quadro recente de estabilizagáo económica, de modo bem mais radical do que o utilizado quanto a esses outros valores.

A nossa hipótese, fruto da observagao do que se manifesta nos últimos anos na ordem jurídica brasileira, é a de que a extrema redugáo inflacionaria a níveis civili-zadíssimos e mínimos de flutuagáo de pre-gos, tornou mais patente o contraste da incidencia pesada da carga dos juros, até pelo contrapeso que a demanda permanente de recursos ñas contas públicas - urna das áncoras do sistema antiinflacionário -representa, tornando o peso do juros ainda mais sensível.

Continua vigindo aquele Decreto 22.626, e depois dele apenas temos, de ri-gueur, novidades legislativas na materia, na Lei 4.594/64 e no art. 192, § 3% da CF/88.

A Lei 4.594, cuidando de regular o entao institucionalizado "Sistema Financei-ro Nacional", ao conferir poderes, ao ali criado Conselho Monetario Nacional, de limitar e regular juros cobrados pelas insti-tuigóes financeiras, deflagrou o entendi-mento cristalizado na Súmula 596 do STF de que a esses credores bancáríos, licenciados e fiscalizados nos termos legáis, nao se aplicavam os limites quantitativos de juros do Decreto 22.626.

O § 3° do art. 192 da Carta atual, en-fim, assim declara: "As taxas de juros reais, nelas incluidas comissóes e quaisquer ou-tras remuneragóes direta ou indiretamente referidas a concessao de crédito, nao pode-ráo ser superiores a doze por cento ao ano; a cobranga ácima deste limite será concei-tuada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".

B - As especies de juros, como meio remuneratorio do capital

Juros sao, no conceito clássico de Washington de Barros Monteiro, "o rendi-mento do capital, os frutos civis produzi-dos pelo dinheiro" (Curso deDireito Civil, 17° ed., Sao Paulo, Saraiva, v. 4, p. 337).

María Helena Diniz, no seu excelente Curso de Direito Civil Brasileiro, 2- v., p. 307, considera os juros como bens acessó-rios, nos termos do art. 60 da lei civil básica, invocando o conceito de Lacerda de Almeida (Obrigagóes, 2- ed., pp. 175-6) que os delineia como "o prego do uso do capital alheio, em razao da privagao deste pelo dono, voluntaria ou involuntariamente".

Já vimos advogados de banqueiros, afirmando, em negociagóes, que o banco "nao deve correr riscos". Essa idéia nao é exata nem no plano económico nem, rigorosamente, no jurídico, e talvez o erro derive da conhecida diferenciagáo teórica entre capital de risco (investimento acionário, subscrigáo de cotas, contas de participagáo etc.) e capital de empréstimo.

O capital de empréstimo - que o ban-queiro ou qualquer mutuante, como um de-benturista, p. ex., verte a alguém - nao corre o "risco jurídico" do mutuario, no sentido de que o crédito do emprestador do dinheiro, crédito pelo reembolso e pelos acrés-cimos de juros e outros, nao depende da apuragao de lucros, ao contrario do que ocorre com o capital de risco.

Mas isso nao significa que esse capital de empréstimo nao corra o "risco económico" que cerque o mutuario, e nao corra igualmente um certo risco jurídico pois há pendente, de toda forma, a possibilida-de da inadimpléncia e da insolvencia.

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A remuneragao do capital de emprés-timo, na sua estrutura teórica, ela deve considerar o maior ou menor risco económico que o mutuante corre de nao ter o retorno previsto de seu dinheiro, ou de nao té-lo como previsto, e tudo isso repercute na for-mulagáo, na quantificagáo dos juros.

O ultra perverso fenómeno inflacionario andou prejudicando, por tanto tempo, a questáo da fluencia dos juros e sua adequa-da identidade, a um ponto tal que era co-mum falar-se em "juros reais", diferencian-do-os dos "juros nomináis", uns libertos, e outros nao, da carga corretiva da deprecia-gáo do valor monetario.

Nesta quadra, atual, com o fim da vo-racidade dos índices de inflagáo, varios e obvios beneficios apareceram na circula-gao económica e monetaria do país, e como sói suceder nessas conjunturas, a ordem jurídica tende a refletir de algum modo o novo quadro.

Mais que nunca, entáo, cabe distinguir, aquilo que nos tempos de volatilidade monetaria andou confundindo tantas mentes.

E para isso vamos nos reportar ainda a excelente civilista Maria Helena Diniz (ob. cit., p. 307) que esclarece as duas na-turezas dos juros compreendidos no nosso sistema jurídico:

- os juros compensatorios, que "de-correm de urna utilizagáo consentida do capital alheio, em regra preestabelecidos no título, onde os contraentes fixam os...

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