A justiça do trabalho da atualidade e seus desafios 'desiguais'

AutorRoberta Ferme Sivolella
Páginas134-145

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Roberta Ferme Sivolella

Juíza Titular da 2ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro (atualmente atua como Juíza auxiliar da vice-presidência do TST); professora de direito processual e coletivo do trabalho.

O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que manejar a balança1.

1. Introdução

A Justiça do Trabalho pulsa uma história única, que, por sua vez, clama por suas peculiaridades. Um Tribunal de uniformização de jurisprudência único; uma competência Especializada única no mundo em suas nuances; e, construindo seus pilares, um corpo de juristas único, como o Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, também único em toda a sua trajetória.

Impossível por meio de tão poucas linhas resumir o currículo do Excelentíssimo Ministro ora homenageado. Mais difícil ainda deixar de lado as lembranças de quem compartilha sua mesma origem conterrânea, e quem teve o prazer de ter suas palavras estimulando e abrilhantando o primeiro livro publicado – uma honra! –, baseado na tese sobre a dispensa coletiva e os direitos fundamentais. Área mais que conhecida e tão brilhantemente analisada pelo nobre Ministro, que sempre presenteou o mundo jurídico com suas decisões tão acertadas e análise crítica tão apurada do Direito do Trabalho.

Tentaremos, nas próximas linhas, nos espelhar na mesma técnica e amor ao Direito que tanto acalentou nossos corações jurídicos, para falar dos desafios atuais da Justiça do Trabalho.

A história do Direito do Trabalho no Brasil expressa em sua evolução o próprio conceito da relação a que visa guarnecer. Como consequência da grande discrepância entre os sujeitos que compõem a relação de trabalho, a hierarquia econômica e a desigualdade social que permeiam a história da sociedade brasileira também se refletem na maneira como se relacionam os seus sujeitos sociais, a legislação pátria e, como órgão pacificador dos conflitos advindos de tal relação, a Justiça do Trabalho, por meio da exteriorização de sua jurisprudência.

Não há dúvidas de que há uma relação de “causa e efeito” recíproca entre as relações abarcadas pelo ramo do Direito que estuda o dispêndio e aproveitamento da força de trabalho e suas nuances, e a Economia, assim entendida não somente como ciência, mas como fator (e medidor) inerente a cada momento político e histórico. Não por acaso, a regulamentação das relações de trabalho, em análise de sua maior flexibilidade ou maior rigidez, apresenta movimento pendular e cíclico, ora tendendo para uma maior normatização e fiscalização pelo Estado, ora tendendo para uma maior flexibilização e liberdade do estabelecimento de suas cláusulas entre as partes do contrato.2

Como consequência natural dessa constatação, exsurge o fato de que o Direito do Trabalho, em seu viés material e processual, recebe grande impacto de fatores extraprocessuais e maior imediaticidade de tal influência, sendo constante o desafio de tentar adequar a interpretação e a aplicação do

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regramento vigente às peculiaridades do cenário de incerteza, animosidade e luta entre seus atores sociais, profundamente afetados, ainda, pelo cenário político de cada momento histórico.

As cobranças da sociedade, nesse contexto, apresentam-se com extrema dubiedade, quase como que um reflexo da grande dicotomia que permeia a relação de trabalho, díspar entre seus sujeitos em sua essência. Se, por um lado, a economia cobra urgência em se garantir a saúde econômica do país – e sem a qual não há fonte geradora de empregos –, há a consciência da necessidade inafastável de se garantir a proteção alcançada por meio de grandes conquistas sociais, referentes à proteção ao emprego. Esse último elemento garante, em última análise, o produto contraprestativo que vai viabilizar não só a subsistência do trabalhador e sua família, como direito fundamental3, mas também servirá como combustível a movimentar o aparato econômico, em intensa relação de causa e efeito.

A finalidade concreta de minorar o abismo econômico entre as partes e manter a isonomia frente à velocidade da mutação e fragmentação das relações4 impõe caráter peculiar à atividade da Justiça do Trabalho, transformando-a em agente transformador das próprias relações que se valem do seu jugo.

Balanceando-se entre medidas de maior ou menor permissividade à flexibilização das normas trabalhistas protetivas, a jurisprudência trabalhista incessantemente tenta se equilibrar entre as forças dicotômicas que clamam pela urgência de sua atuação. Vivem os operadores do direito do trabalho, assim, uma constante batalha para garantir o equilíbrio entre as forças que se contrapõem dentro dos conflitos sociais de sua competência, mantendo os direitos fundamentais arduamente conquistados, ao mesmo tempo em que cuida para que a repercussão social de suas decisões não acabe por inviabilizar e empregabilidade.

Um primeiro problema que emerge desse panorama é a linha tênue entre a flexibilização (assim entendido o termo como o ato de “causar transformações nas regras existentes, atenuando a influência do Estado, diminuindo o custo social da mão de obra, mitigando certas regras que não ofendem a dignidade do ser humano, mas revelando ‘standart minimun’ indispensável5) e a

desregulamentação (em que a supressão da criação de normas supressivas da se dá sem a garantia do chamado “mínimo indispensável”), o que bem expressa os efeitos da já citada repercussão social das decisões na Justiça do Trabalho, traduzindo-se em desafio cotidiano da sua atividade.

Por outro lado, o grande aumento da taxa de litigiosidade como consequência da crise econômica e o paradoxo entre esse dado como reflexo do acesso à justiça e, ao mesmo tempo, como elemento que inviabiliza a consecução do processo efetivo e eficaz, é problema grave atualmente enfrentado pelos Tribunais, e que incita a reflexão.

Em meio a estes desafios, o ramo do Poder Judiciário dito como “Especializado” tenta se adequar a uma realidade de intenso paradoxo e desafio: garantir a evolução do Direito como retrato da realidade social e suas mudanças, e, ao mesmo tempo, guarnecer a segurança jurídica necessária para que o escopo do processo como materialização efetiva do direito seja alcançado.

2. Direito do trabalho x economia: números e verdade social

O desenvolvimento da sociedade e do ser humano – antes isolado em grupos esparsos em economia de subsistência – se confunde com o desenvolvimento da própria ciência econômica, através das relações de troca entre grupos maiores e que necessitavam, para seu próprio desenvolvimento, realizar intercâmbio de mercadorias e conhecimentos. A noção do comércio e do “mercado” como forma de expressão do capital, e as relações que envolvem, acabam por surgir junto da noção do trabalho como atividade que, frente ao seu tratamento histórico, corrobora a ideia do produto do trabalho humano como valor. Nos dizeres de Marx,

[...] a natureza não produziu de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, de outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Essa relação não faz parte da história natural nem tampouco é social, comum a todos os períodos históricos. Ela mesma é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da decadência de toda uma série de formações mais antigas da produção social.6

Desnecessário é se repetir a intensa e constante influência da economia nas relações de trabalho. Tamanha é a relação entre a primeira e o direito do trabalho, integrado em seu âmago pela eterna dicotomia entre o capital e o trabalho, que a doutrina hodierna denomina de “Direito Econômico do Trabalho” o centro de construção teórica que se funda na análise da dicotomia e princípios (por vezes também dicotômicos) que envolvem a construção teórica do Direito Econômico e do Direito do Trabalho.

Os efeitos econômicos na seara trabalhista têm sido vistos com intensa e maior escala nas últimas grandes crises financeiras que atingiram – e ainda projetam seus efeitos – na sociedade globalizada. Em verdade, não se trata de um fenômeno novo ou inédito, mas que, indubitavelmente, nos últimos anos tomou proporções de peculiar e alarmante vulto.

Como consequência da relação de causa e efeito já citada, a crise econômica reflete em aumento sem precedentes no ajuizamento de ações trabalhistas, enquanto o mercado econômico responde com a diminuição de contratações formais.

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Enquanto o número de empregados com carteira de trabalho assinada ao fim de 2017, 33 milhões, foi 2% menor que um ano antes, o total de trabalhadores sem registro em carteira cresceu 5,7% no mesmo período. A categoria dos trabalhadores por conta própria somava 23,2 milhões de pessoas ao fim de 2017, crescimento de 4,8% em relação ao fim de 2016.

A fragilidade do mercado formal, marcado pela informalidade e renúncia de direitos, acaba por ficar camuflado sob os números de uma suposta diminuição da taxa de desemprego, que não distingue esses dois mercados. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), “ dentre os aspectos adversos da evolução do emprego se destaca a queda continuada do trabalho com carteira assinada”, com impactos negativos ao crescimento econômico sustentável e de qualidade. Ainda não se sabe quais serão os efeitos de tais condições a longo prazo7.

Sobre o assunto, texto interessantíssimo que bem...

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