Justiça Negociada e a Defesa dos Direitos dos Adolescentes nos Processos Socioeducativos

AutorAlexis Couto de Brito; Giancarlo Silkunas Vay
Páginas393-403

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Mesmo com as declarações juntadas aos autos, o juiz manteve sua internação provisória. Para piorar, em audiência de apresentação, ocorrida 28 dias após sua prisão, veio a extorsiva proposta: se confessasse, e a acusação e a defesa expressamente desistissem de todas as outras provas, o juiz já sentenciaria Gustavo a uma liberdade assistida e, no mesmo dia, Gustavo iria para casa. Se não confessasse e quisesse tentar provar sua inocência, não haveria nenhum problema. Seria marcada nova audiência, onde as provas poderiam ser produzidas sob o crivo do contraditório. Até lá, no entanto, aguardaria internado na Fundação Casa. Isso, por incrível que pareça, foi dito abertamente tanto pelo membro do Ministério Público quanto pelo magistrado. Gustavo, chorando muito, confessou. Ao menos formalmente. Porque ele, seus familiares, seus advogados e até as vítimas sabem que ele é inocente.

Marcelo Feller

1. Introdução

Em meio aos processos socioeducativos — de responsabilização de adolescente pela prática de conduta classificada como ato infracional —, não raras vezes tem sido possível se deparar com a prática dos chamados “acordões”, em que se negocia a aplicação de medida socioeducativa em meio aberto ao acusado em troca de sua confissão ou, em outros casos, como condição para viabilizar a concessão da remissão como forma de suspensão ou extinção do processo. Tais procedimentos, a princípio vantajo-sos ao acusado, que poderia ter contra si, ao final do processo, a aplicação de uma medida em meio fechado decorrente de uma sentença condenatória, escondem interesses utilitaristas com altos custos humanos, cuja prática merece ser mais bem analisada, como se pretende no presente artigo.

2. Sobre diversion eremissão

A remissão, instituto previsto nos arts. 126 a 128 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é, a exemplo de tantos institutos próprios

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da seara da infância e da juventude, contentora de um caráter um tanto quanto dúbio, teoricamente em consonância com o Sistema de Garantias (SG) da criança e do adolescente, cuja prática, todavia, tem possibilitado a nefasta aplicação de medidas coercitivas ao acusado possivelmente inocente, com a supressão de todas as garantias processuais e penais historicamente concebidas.

As normativas que compõem o SG das crianças e dos adolescentes acusados da prática de ato infracional foram determinadas por meio de um percurso histórico diferente do que se transcorreu para os adultos, tendo por base três momentos distintos1: (1) a etapa penal indiferenciada, que não trazia à criança maiores diferenciações de tratamento penal da conferida a um animal ou a um adulto, a depender da idade atribuída por lei, a qual perdurou, até meados do fim do século XIX e início do século XX; (2) etapa tutelar, pautada na doutrina da Situação Irregular, que tinha por premissa considerar o ato praticado uma doença, seu autor um doente, um coitado digno de piedade (não é à toa que nesse momento ganhou força o emprego do termo menor/de menor, a mostrar a debilidade e a diminuta importância dada aos indivíduos que se encontravam em tal fase da vida), e o juiz, por sua vez, um ser bondoso a que, tal qual a figura do pai e do médico, competiria bem ministrar aquela medida exata para corrigi-lo, a fim de que o acusado não reincidisse ou, ainda antes, se reerguesse de certa fragilidade social demonstrada para que sequer viesse a cometer conduta proibida pela lei;
(3) etapa garantista, pautada na doutrina da Proteção Integral, alavancada principalmente pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CIDC), que transforma a figura da criança em apenas um objeto de tutela para alcançar o patamar de sujeito de direitos, à qual não seriam mais simplesmente aplicadas medidas, mas antes averiguada sua responsabilidade na efetiva prática de conduta tida como antijurídica, penalmente relevante e culpável. Nesta linha, o enfoque principal passa a ser o de proteção de seus direitos, não mais a falácia da salvaguarda da criança em si, o que poderia redundar, infelizmente, no mesmo erro da etapa anterior. Nas felizes palavras de Emílio García Méndez, as piores atrocidades foram cometidas muito mais em nome do amor e da compaixão do que do próprio desejo de repressão. Em suas palavras, “nada contra o amor quando o mesmo se apresenta como um complemento da justiça; pelo contrário, tudo contra o ‘amor’ quando se apresenta como um substituto, cínico ou ingênuo, da justiça”2. No Brasil, as manifestações da opção por tal etapa revelam-se na Constituição Federal de 1988 (prioritariamente em seus arts. 227 e 228), no ECA, na própria CIDC, na lei do SINASE, além de outros diplomas legais e convencionais, apesar de persistência de alguns ranços legais que ainda trazem o viés menorista à tona, próprios da transição de uma etapa para a outra.

Dentre o universo de diplomas internacionais componentes do SG da criança e do adolescente, parece que a primeira referência ao instituto da remissão se dá em meio às Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), adotadas na Assembleia Geral da ONU em sua Resolução
n. 40/33, de 29 de novembro de 1985, na qual, na versão oficial em inglês, utiliza-se o termo diversion.

A diversion segue o princípio da “oportunidade”, em contraste ao princípio da legalidade3, o que significa afirmar que se dá preferência a uma solução alternativa ao conflito que não a formalizada por um processo e suas consequências. Aplicado a adultos e adolescentes, o princípio, e consequentemente o instituto, adquiriu uma aprovação e relevante expansão a partir da aceitação da teoria do etiquetamento e, posteriormente, com a evolução dos ideais educacionais (educação em vez de punição), e da presença explícita ou implícita do princípio de proporcionalidade nas constituições democráticas modernas4.

Conceitua-se a diversion (que pode ser corretamente traduzida por afastamento ou diversificação),

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para as Regras de Beijing, como as alternativas à persecução processual de crianças e adolescentes. Os mecanismos mais comuns para atingir a diversion são advertências informais, repreensões e política de cuidados. A teoria por trás da diversion sustenta que quando os jovens cometem infrações menores ou comportam-se de certo modo que seus atos possam ser categorizados como criminais, deixar a solução a seus próprios recursos (por exemplo: família) colabora para sua não inserção na criminalidade. A teoria do etiquetamento sugere que reações oficiais ao comportamento jovem desviado, especialmente a persecução processual penal, o julgamento e as sentenças, são incentivos para confirmar a identidade desviada e, consequentemente, criar uma carreira criminosa. A melhor política, portanto, para alguns casos, seria simplesmente a não intervenção. Em adição aos argumentos teóricos existem argumentos práticos que advogam em favor da diversion: seu custo é mais efetivo e proporcional, e os estudos demonstram que os jovens que foram beneficiados pelo instituto são proporcionalmente menos reincidentes do que aqueles que foram processados pelas vias tradicionais5.

Há enorme consenso a respeito das funções declaradas das medidas socioeducativas de que o que predomina como função das sanções aplicadas aos adolescentes é a prevenção especial positiva (integração social — art. 1º, § 2º, II, SINASE), muito embora haja inequívoca presença da função retributiva (responsabilização e desaprovação da conduta — art. 1º, § 2º, I e III, SINASE). Assim, convém destacar que a prevenção especial não se esgota no aspecto da ressocialização ou — quando se aplica o termo a adolescentes — socialização e educação, senão que abarca, ademais, junto à ideia de responsabilização e advertência pela conduta praticada, a perspectiva da não dessocialização. Ou seja, a configuração desse sistema de sanções deve evitar ao máximo uma intervenção danosa no sensível processo de amadurecimento do adoles-cente, devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 227, § 3º, V, CF). Com isso pretende-se reduzir ao máximo a estigmatização e dessocialização dos adolescentes que cometem fatos delituosos, provocados por seu submetimento a um processo penal e ulterior condenação penal (ou seu processamento e a aplicação de sanção equivalente) que possa recair sobre eles6.

Conforme se verifica do art. 11 das referidas Regras, deve-se considerar a possibilidade, quando apropriada, de lidar com os jovens acusados da prática de ato infracional sem recorrer à instauração de procedimentos formais pelas autoridades competentes (11.1). A Polícia, o Ministério Público e outros organismos que se ocupem de casos relacionados podem, sem recorrer às vias formais, e de acordo com critérios estabelecidos para esse propósito nos respectivos sistemas jurídicos e também em harmonia com os princípios contidos nas Regras de Beijing
(11.2), buscar soluções informais aos conflitos que envolvam adolescentes.

Qualquer diversion que envolva o encaminhamento do jovem para setores apropriados da comunidade ou outros serviços terá como imprescindível o seu consentimento, ou de seus pais ou responsáveis, conquanto essa decisão poderá estar sujeita à revisão pela autoridade competente, em havendo requerimento para tanto (11.3). Em vistas a facilitar os encaminhamentos...

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