Justiça Restaurativa em Risco: a crítica criminológica ao modelo judicial brasileiro

AutorSalo Carvalho - Daniel Silva Achutti
CargoProfessor adjunto de direito penal e criminologia da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em direito da Unilasalle/RS - Professor de direito processual penal no IBGEN/RS e de justiça restaurativa na Escola Justiça Restaurativa Crítica
Páginas1-39
1
DOI https://doi.org/10.5007/2177-7055.2021.e74694
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está sob uma Licença Creative Commons.
Com essa licença, você pode compartilhar, adaptar, para qualquer fim, desde que atribua
a autoria da obra e forneça um link para a licença, e indicar se foram feitas alterações.
Justiça Restaurativa em Risco: a crítica
criminológica ao modelo judicial brasileiro
Restaurative Justice at Risk: the criminological
critique to the Brazilian judicial model
Salo Carvalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil
Daniel Achutti
IBGEN Business School, Porto Alegre, Brasil
Resum o: A partir do acúmu lo prático-teórico d a criminolog ia crítica e do abol icio-
nismo pena l (teorias de base), o traba lho analisa , através do estudo de ca sos (proce-
dimento metod ológico), a ecácia dos substitut ivos penais e processua is penais no
Brasil. A e xperiência naciona l em relação à forma de implement ação dos Juizados
Crimi nais (Lei 9.099/95), das penas alternativa s (Lei 9.714/98) e das cautelares
diversas d a prisão provisória ( Lei 12.403/11), agregada aos pr imeiros diagnós ticos
sobre a execução da s práticas restaur ativas, permite projet ar os riscos de inefetiv i-
dade ou o desvirtuamento dos seus objet ivos principais. A hipóte se desenvolvida
no artig o é a de que a formação (e a ação) autoritá ria do Poder Judiciár io brasileiro
tem impedid o o pleno desenvolvimento dos in stitutos descarce rizadores, em ger al,
e da Justiça Restaurativa, em particular. Neste sentido, indica a necessidade de as
práticas re staurativas ser em orientadas pela s diretriz es apontadas pela cr iminologia
crítica e pelo a bolicionismo, precisa mente no que diz respeito ao de senvolvimento
de uma lógic a anticarcerár ia que se oponha ao punitiv ismo e ao inquisitoria lismo.
Palavras-chave: Justiça Restaur ativa – Crimi nologia Crítica – Ab olicionismo – Pri sões
Abstract: Based on the pr actical-theoret ical accumulat ion of critical cr iminology
and penal abolitionism (basic theories), the work analyzes, through case stud ies
(methodologica l procedure), the eectiveness of substit utes for penal and penal
procedures in Brazil. The experience accumulated in relation to the form of
2 SEQÜÊNCI A (FLORIA NÓPOLIS), VOL. 42, N. 87, 2021
JUSTIÇ A RESTAUR ATIVA EM RIS CO: A CRÍTIC A CRIMINOLÓ GICA AO MODELO J UDICIAL BR ASILEI RO
implementat ion of Small Claim Cou rts (L aw 9.099/95), of alternative pena lties
(Law 9.714/98) and of precaution ary measure s other than provisiona l imprisonment
(Law 12.403/11), added to the rst diagnoses on the execution of the restorative
practices , allows to project the risk s of ineectiveness or the di stortion of its main
objectives. The hy pothesis developed in the art icle is that the aut horitar ian for-
mation (and act ion) of the Brazi lian Judiciar y Power has prevented the f ull deve-
lopment of the decarcer izing institutes, in general, and of Restorative Justice, in
partic ular. In this sense, it i ndicates the need for restora tive practices to be guid ed
by the guidel ines pointed out by critical crimi nology and penal abolitionism,
precisely with regard to the development of an anti-prison logic that opposes to
punitivism and inquisitoria lism.
Key wor ds: Restorative Justice – Critical Crimi nology – Abol itionism – Pr isons
1 INTRODUÇÃO
1.1. Após mais de um sécu lo de existência é possível armar que
a criminologia nasceu e se desenvolveu em crise. A criminologia é crise ou, no
mínimo, está em permanente crise. O estado de crise é possivelmente a
única variável constante no pensamento cr iminológico. Variável que se
faz presente desde o debate epistemológico sobre a validade do seu esta-
tuto cientíco, a part ir da problematização do seu objeto e seus métodos
de investigação, às tarefas (funções) que são atr ibuídas aos cr iminólogos.
Mas a assertiva sobre a crise constitutiva da criminologia precisa
ser submetida ao questionamento dos seus motivos: qual a razão desta
fundação instável ou até mesmo temerária?
Um dos indicativos possíveis desta crise seminal é o fato de a
emergência da cri minologia, como disciplina cientí ca e autônoma, ter
ocorrido nas entranhas de uma instituição cujo fracas so é igualmente a
sua marca de constituição e desenvolvimento: a instituição carcerár ia.
Na hipótese foucaultiana, “(...) logo a seguir a prisão, em sua realida-
de e seus efeitos visíveis, foi denunciada como o grande fracasso da
justiça penal; (...) a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito
cedo, nesses mesmos anos de 1820-1845; ela aliás se xa num certo
número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem
SALO CARVALHO DA NIEL ACHUTTI
SEQÜÊNCI A (FLORIA NÓPOLIS) , VOL. 42, N. 87, 2021 3
hoje sem quase mudança nenhuma.” (F, 1987, p. 234)1. A
conclusão de Foucault, em forma de indagação, é esclarecedora: “o
pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”
(F , 1987, p. 239). No caso: a crise não faz parte da funcio-
nalidade da criminologia?
Pavarini demonstra que quando se discorre sobre a criminolo-
gia se está a referir uma linguagem em inentemente prossionalizada;
se está a apontar um momento histórico em que se estabeleceu a
necessidade de demarcar um certo saber como atividade prossional.
A condição de possibilidade da prossão criminológica foi a deli-
mitação de “(...) um objeto sobre o qual xar seu interesse exclusi-
vo.” ( P  , 1988, p. 19). Na metáfora proposta por Pavarini, o
doente é o prius da ciência médica em relação à categoria doença,
mas é certamente um posterius, como objeto de saber, em relação à
clínica, pois a reexão prossional sobre as doenças do corpo e da
mente surge depois da hospital ização. Assim, no campo das ciências
criminais, em ra zão da “redução do criminoso ao encarcerado” (P ,
1988, p. 19), a criminologia se interessou por uma “patologia” so-
cial que, embora preexista ao seu surgimento, é colocada a posterior i
como seu objeto.
O saber crim inológico surge, portanto, como um conhecimento
prático-prossional no interior dos cárceres, direcionado à explora-
ção cientíca (diagnóstico, classicação e prognóstico) do criminoso
reduzido à condição de encarceramento (objeto). Não por outro motivo,
os distintos discursos criminológicos giram em torno ou partem da
questão carcerária. Cárcere que é a materialização moderna do potestas
puniendi; a concretização, em forma jur ídica, da violência programada
da autoridade constituída contra as liberdades.
1
Segundo Fou cault, as formu lações que const ituem as prisõe s e que se mantêm const antes
seriam : (a) as prisõe s não diminuem as t axas de c rimi nalidade; (b) a deten ção provoca
reincidênc ia; (c) a prisão fa brica (direta e indi retamente) a del inquência; e (d) a prisão
torna pos sível a organizaç ão de grupos crim inosos (organi za, solidariz a e hierarquiza).
(Foucault , 1987, pp. 234-236)

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT