A Justiça de Transição

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas233-261

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28. Dogmática, zetética e crítica da justiça de transição

No estudo dos direitos humanos , especialmente quanto ao problema da eficácia da legislação que os declara e garante, uma situação particularmente relevante se apresenta: como lidar com a necessidade de preservá-los na plenitude de seus princípios quando um governo autoritário, em face da iminente restauração do estado de direito e consequente subs-tituição por um governo democrático, trata de impedir a investigação, processamento e punição de delitos contra os direitos humanos praticados na vigência do regime opressor.

Este e outros problemas resultantes da passagem de um sistema autocrático para uma ordem democrática exigem soluções jurídicas que repercutem no contexto ético, político e social do novo regime. É um conjunto interdisciplinar que vem sendo caracterizado como justiça de transição.

O Brasil e outros países da América do Sul passaram a vivenciar essas questões à medida que eram trazidos ao conhecimento público os atentados aos direitos humanos praticados por agentes das ditaduras instaladas nesses países a partir dos anos 1960. Trata-se de delitos de extrema gravidade, considerados de lesa-humanidade, eis que assinalam um retorno à barbárie e chocam a consciência da humanidade, visto serem incompatíveis com o progresso da civilização.

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Com a restauração do estado de direito, a nova constituição tem de estabelecer regras de mutação, o que normalmente é feito através de disposições constitucionais transitórias. Mas estas não têm o condão de resolver a totalidade das questões que se apresentam, e algumas se revestem de grande complexidade. São problemas de ordem judicial e político-administrativa que dizem respeito ao interesse da sociedade, especialmente quanto aos malefícios causados por agentes do regime anterior.

Com a reimplantação da democracia e da normalidade constitucional, existe o compreensível anseio por alguma forma de reparação às vítimas e suas famílias, bem como de punição aos que tenham praticado os delitos. É que a extrema gravidade desses atentados aos direitos humanos, à medida que vão sendo revelados, causa crescente mal-estar não somente no círculo social das vítimas, como também na consciência mesma do povo, o que tem levado os dirigentes do novo estado de direito a tentar minimizar tais danos, presumindo-se a impossibilidade de restaurar o statu quo ante, e responder às queixas, reclamações e exigências que lhe são apresentadas; enfim, dar uma satisfação à opinião pública, as mais das vezes veiculada pela mídia. Em suma, os governantes do novo estado de direito devem procurar atender ao clamor generalizado por justiça num ambiente de transição democrática, o que exige uma atitude política que envolve os três poderes. Tal é o contexto em que se pode falar de uma justiça de transição.

A remoção de uma legislação autoritária não ocorre com a mera transferência do poder político a dirigentes democraticamente eleitos, pois ela acaba por incorporar-se ao sistema jurídico da nação, ao abrigo das novas disposições constitucionais. Daí a ocorrência de antinomias em torno da eficácia dos direitos humanos.

No caso da justiça de transição, ocorre uma antinomia ao mesmo tempo principiológica e ideológica, que opõe, de um lado, o direito das vítimas da opressão, inclusive em seu aspecto doméstico e social, e o correspondente dever do Estado de proporcionar-lhes a devida assistência e um mínimo de satisfação, e, de outro, o dever de assegurar a ordem social e a segurança dos cidadãos, o que poderia exigir o sacrifício daqueles anseios.

Daí o dilema: o que é mais importante, o esquecimento, a varredura para “debaixo do tapete” da história, da memória das iniquidades cometi-

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das ou o resgate dessa memória com o objetivo de punir os responsáveis, ou, pelo menos, dar uma resposta, ainda que tardia?

A justiça de transição vem a ser esse conjunto de medidas que, ao abrigo da legislação pós-autoritária, possa atenuar os efeitos do autoritarismo e assim responder à questão da eficácia do direito em períodos de metamorfose política. Este prisma não se atém à dogmática da legislação, mas abrange todo o conjunto de providências, no campo jurídico, político e social, que um governo democrático toma ou deve tomar quando sucede a um regime autocrático que, por de seus agentes, praticou, tolerou ou acobertou ações atentatórias aos direitos humanos. Visa-se realizar a justiça num momento de afirmação democrática, o que exige uma atitude política dos novos governantes com repercussão nos três poderes.

Este é um conceito amplo, com o qual é possível tratar do tema sob a perspectiva da teoria geral do direito. O que tem prevalecido é um sentido mais restrito, a análise dogmática, tendo por núcleo a antinomia entre uma legalidade autoritária e uma nova legalidade, atendidas as características de cada país e as normas dimanadas do direito internacional. Nessa perspectiva, há uma tendência a que a teoria jurídica se atenha à situação brasileira e a de outros países da Ibero-América que vivenciaram os horrores da ditadura, o terrorismo oficial de que eram vítimas os próprios cidadãos. É um tipo de análise em que prevalece a confrontação entre soluções preconizadas pelo direito interno de cada país com a legislação internacional.

A especulação doutrinária ensejou a ampliação do objeto de forma a abranger todas as situações análogas ocorridas no planeta, tomando-se como ponto de partida o julgamento de Nuremberg. Ainda que se dê prevalência ao contexto ibero-americano, noo qual se vivenciaram os horrores de um autoritarismo que ignorava sistematicamente os direitos humanos, é possível uma análise mais abrangente das situações envolvidas pela assertiva justiça de transição, de forma que não fique circunscrita aos aspectos puramente dogmáticos.

Embora a expressão possa referir-se a fatos que remontam às guerras e revoluções que destruíram a organização política medieval e o absolutismo monárquico, é um tema relativamente novo, que tem sido dissecado sob os mais diversos enfoques. Assim, privilegiam-se os aspectos administrati-

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vos, constitucionais e de direito internacional, mas não existe tratamento uniforme da matéria, e dificilmente se acham trabalhos que contemplem a interdisciplinaridade própria da questão. Salvo a pesquisa histórica, que visa restaurar a verdade de fatos ocultos ou dissimulados, não há uma incursão filosófica ou ensaios de uma teoria jurídica geral. Isso a despeito do forte e inafastável conteúdo ético do que se entende por justiça de transição.

Desse modo, fala-se em justiça de transição para referir-se às revoluções ocorridas após o fim da guerra fria, quando, nos países do leste europeu e da África, movimentos de opinião pública passaram a exigir a punição dos responsáveis por atrocidades cometidas nos regimes anteriores.

Contudo, ainda que se atenha ao ponto de vista dogmático, não se afasta o conceito amplo presente em muitos autores, notadamente em direito constitucional. Tal amplitude conceitual contribui para desviar o instituto de seu objetivo principal, a justiça. É que se dá maior ênfase ao aspecto transição do que ao baluarte justiça. E a adaptação está normalmente vinculada aos objetivos do Estado, o que legitima o esquecimento dos crimes da ditadura em nome da ordem, da segurança e do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Mais ainda, que sejam perdoados, expectativa que as ditaduras sempre desrespeitaram.

O que então se pretende é um debate que possa suprir ao menos em parte essa lacuna, e, como teoria geral, o que se propõe é uma análise zetética e crítica da justiça de transição.

O ponto de vista zetético leva à interpretação das leis da transição democrática dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequação a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justiça material e outros, o que possibilita que se vá além dos textos legais e mesmo ao afastamento deles para fazer prevalecer esses valores. Na prática eles muitas vezes confundem-se com objetivos ideológicos ou político-partidários.

É uma zetética intradogmática, que desemboca na hermenêutica jurídica. Mas há igualmente uma zetética metadogmática, ou transdogmática, que envolve a interdisciplinaridade das ciências jurídicas e sociais. Esse enfoque conduz à teoria crítica do direito, cuja metodologia, aplicada à justiça de transição, faz inverter a ordem epistemológica. Em vez de es-

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tudar-se a sociedade sob a ótica do direito, trata-se de analisar o direito sob o ponto de vista da sociedade.

29. Natureza jurídica da justiça de transição

O entendimento amplo da justiça de transição extravasa o referencial que liga a expressão ao poder judiciário, com o alcance do entendimento de uma justiça criminal. E assim tem sido utilizada para referir-se à justiça penal de transição, bem como se fala em justiça histórica, reparatória, administrativa e constitucional.214 Existe igualmente alusão a uma justiça restaurativa, termo surgido a propósito da atuação das comissões de inquérito da África do Sul. São denominações que indicam os respectivos conteúdos semânticos.

Salvo a justiça criminal, os outros significados transcendem a atuação do judiciário e envolvem todo o aparato governamental no intuito de atender plenamente as recomendações dos órgãos internacionais, inclusive o que está contido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta, ficou bastante claro que os países têm o dever não somente de investigar, mas também de punir. É também a linha dos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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