Kant entre republicanismo e liberalismo

AutorKarine Salgado, Philippe O. Almeida
Páginas301-317
CAPÍTULO 12
Kant entre Republicanismo e Liberalismo
Karine Salgado
Philippe O. Almeida
1. Introdução
A losoa de Kant é impactante sob muitos aspectos. Impressio-
na porque inova, pela via inesperada do criticismo, se ressalta pela sua
abrangência e pelo esforço de tudo se abarcar dentro de um coeso siste-
ma, mas também, e sobretudo, se destaca por pontos especícos, e mui-
tas vezes polêmicos, que forçam a reexão e desencadeiam discussões
intermináveis. No edifício de concreto armado de que é feito o corpus
kantiano, há salas especícas pelas quais inúmeros intérpretes, ontem
e hoje, se digladiam. Kant convida ao debate e à sedutora armadilha de
sua crítica e superação.
Como a losoa crítica se posiciona face às principais tradições
político-ideológicas do Ocidente – a democrática (que se origina na pólis
grega), a republicana (que remete à Roma Antiga) e a liberal (tipicamen-
te moderna)? Como os conceitos de liberdade, lei e poder se articulam em
Kant, em vista dessas tradições?
Diversas leituras distintas do pensamento kantiano foram pro-
postas, nos últimos séculos. Diversas concepções teóricas, no que tange
ao Direito, à Ética e à Política, foram atribuídas ao mestre de Könings-
berg. Seu legado foi reivindicado por incontáveis correntes ideológicas,
razão pela qual não existe uma tradição kantiana única, mas tradições
diversas de exegese do trabalho de Kant, com premissas não raro incon-
ciliáveis.1 Neste movimento, muitas características foram atribuídas a
Kant, especialmente em face às passagens mais marcantes de seu pensa-
mento. Algumas delas tiveram um apelo tão grande que acabaram por
¹ Ileana P. Beade recupera a disputa entre liberais e republicanos pela memória de Kant, a partir de
diferentes leituras do conceito kantiano de liberdade. V. BEADE, Ileana P. Consideraciones acerca
de la concepción kantiana de la liberdad en sentido político. Revista de losofía, 2009, v. 65, p. 25-41.
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determinar preconcepções aos leitores de suas obras. É o caso do caráter
liberal de sua losoa e do individualismo que a subjaz. Nenhuma des-
sas características pode ser negada em absoluto, o que não signica que
possam ser aceitas acriticamente. Repensar o caráter liberal e, no caso
kantiano, consequentemente antidemocrático da sua teoria, bem como
o individualismo que permeia sobretudo os escritos políticos, é o que se
pretende propor.
2. O justo: da moral ao Direito
Ao denir o Direito como um conjunto de condições sob as quais
é possível ao arbítrio de cada um conciliar-se com os arbítrios dos de-
mais segundo uma lei universal da liberdade2, Kant não só evidencia
as diferenças que em seu pensamento se revelam aprofundadas entre
Direito e moral, mas de modo especial ressalta o vínculo indelével que
se estabelece entre elas.3
Na moral são trabalhados alguns dos conceitos que serão caros
ao Direito. A Fundamentação à Metafísica dos Costumes estabeleceu o prin-
cípio supremo da moralidade e, com ele, evidenciou a compreensão de
Kant sobre o homem e sua liberdade.
Não sendo o homem puramente sensível, ele é capaz de agir
segundo a representação de leis, vale dizer, não se determina imedia-
tamente por elas, como ocorre nas relações da natureza. Ao responder
armativamente à capacidade da razão na sua função prática, Kant abre
caminho para os dois conceitos que se erguerão para além da moral e do
Direito, elementos capazes de amalgamar, ao redor de si, Direito, polí-
tica e história. Assim se desvelam os conceitos de dignidade humana e
de liberdade.
Enquanto racional, o homem é capaz de se autodeterminar, de
legislar para si próprio sem inuência externa. A liberdade surge, en-
tão, como autonomia (autos – nomos), como capacidade de não se deter-
minar por elementos empíricos. A lei moral, lei universalmente válida
porquanto expressão da razão, é factum da razão e o homem toma ime-
² MS, VI, 230
³ Nesse sentido, autores como Edgar da Mata Machado pecam por atribuir a Kant a cisão contempo-
rânea entre moral e o Direito – cisão esta que está na raiz do positivismo jurídico. Embora distintos,
moral e o Direito encontram-se, em Kant, indissociavelmente ligados, posto que ao Direito incumbe
o múnus de zelar pela salvaguarda da liberdade externa – única maneira de o indivíduo realizar-se
eticamente. Cf. MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Direito e coerção. São Paulo: UNIMARCO,
1999.

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