Karl Marx and the critique of human rights/ Karl Marx e a critica dos direitos humanos.

AutorRodrigues, Vicente

Introducao

Nesta analise, interessa-nos, sobretudo, contribuir para a compreensao do processo historico pelo qual os direitos humanos assumiram posicao de centralidade no debate politico contemporaneo, analisado de forma critica a luz dos interesses de classe que o embalaram. Trata-se de recuperacao nao exaustiva, que se vale fundamentalmente de referencias marxistas, sem, contudo, deixar de contrapor outras visoes e de levar em conta O real desenvolvimento dos direitos humanos, investigado dialeticamente e sem automatismos.

A ideia principal e a de que o desenvolvimento dos direitos humanos, como processo historico, e naturalmente contraditorio e tensionado por forcas materiais. Essa complexidade exige a superacao de analises maniqueistas que apresentam o problema como simplesmente sendo uma opcao entre ser a favor ou ser contra os direitos humanos.

Nessa direcao, a reflexao consiste, fundamentalmente, em breve resgate historico sobre direitos humanos e marxismo. Por esse intermedio, busca-se recuperar criticamente os debates e tensionamentos que o tema experimentou durante a Revolucao Russa de 1917, bem como algumas das polemicas posteriores ocorridas no ambito de disputas geopoliticas nos seculos XX e XXI.

Breve historico sobre direitos humanos e marxismo

Para os russos, era 8 de novembro de 1917 (1). No dia anterior, as noticias de que os bolcheviques tinham derrubado o governo provisorio comandado por Alexander Fyodorovich Kerensky ja tinham se espalhado por Petrogrado, a mais populosa e cosmopolita das cidades russas. O velho prefeito G. I. Schreider, apoiador de Kerensky, aproveitou a reuniao da Duma (2) municipal para denunciar os revolucionarios. Alegando ter recebido noticias alarmantes, informou que os prisioneiros da Fortaleza de Pedro e Paulo corriam perigo, e que 14 "junkers" (3) da Escola Pavlovski (4) tinham sido despidos e torturados pelos guardas bolcheviques. "Um deles enlouqueceu", completou o prefeito, e "os ministros estao ameacados de linchamento!".

Indiferente a torrente de insultos lancada pelos partidarios de Kerensky, a experiente revolucionaria e representante bolchevique na Duma municipal, Viera Slutskaia, tomou a palavra, gritando em direcao ao prefeito: "Isso e mentira! E uma provocacao!". Argumentou que o governo de operarios e camponeses que abolira a pena de morte nao admitiria em hipotese alguma atos dessa natureza, e exigiu a formacao de uma comissao que se dirigisse a Fortaleza de Pedro e Paulo com o objetivo de verificar a veracidade das alegacoes. Formada a comissao com representantes de todos os partidos, realizou-se a visita a Fortaleza, chegando-se a conclusao de que as alegacoes nao eram verdadeiras, isto e, de que os oficiais czaristas e partidarios de Kerensky capturados nao tinham passado por torturas ou sofrido graves ameacas (5).

Apesar da expressao direitos humanos nao aparecer expressa no debate acima mencionado, este pode ser considerado um dos primeiros exemplos de tensa disputa sobre o tema no ambito da Revolucao Russa de 1917, ao evidenciar a questao do tratamento a prisioneiros da revolucao.

A acusacao, neste caso, nao era verdadeira. Era simplesmente propaganda de guerra. Contudo, nos anos posteriores, principalmente com a morte de Lenin (1924) e a ascensao do stalinismo (6) e do culto a personalidade (7), centenas de milhares de prisioneiros de opiniao--alem da propria velha guarda revolucionaria--seriam executados, torturados, ou encontrariam seu fim nos gelados gulags siberianos, prisoes criadas pelos monarcas russos, mas mantidas pela nomenklatura (8) stalinista.

Preso as dinamicas da guerra civil e da intervencao estrangeira (1917-1921), da II Guerra Mundial (para a Uniao Sovietica, a partir de 1941 ate 1945) e da Guerra Fria imposta pelos Estados Unidos da America do Norte a partir dos anos 1950, e a pretexto de responder as violentas pressoes contrarrevolucionarias do capitalismo ocidental, o corpo burocratico sovietico conseguia manter o tema nas sombras ou descartar as criticas como "propaganda burguesa". Isso durou ate a publicacao do Relatorio Khrushchev (9), em 1956, que denunciou o terror stalinista (10) e promoveu a reintegracao a vida social de milhares de perseguidos.

Mas, a menos que se esteja perseguindo uma agenda propagandistica especifica, a historia nao se presta a simplificacoes. Mesmo durante o periodo stalinista, cabe apontar, ao lado de graves e generalizadas violacoes de direitos humanos, com julgamentos farsescos e confissoes arrancadas a custa de ameacas ou torturas, deu-se tambem a expansao inedita do progresso social na obscurantista terra dos czares, com programas massivos de alfabetizacao, de ampliacao do sistema de saude, de construcao de moradias, de expansao da producao cientifica e aumento da qualidade de vida.

Com isso nao se sugere qualquer compensacao ou "trade-off", mas apenas contextualizar historicamente a experiencia da Revolucao de 1917 e registrar avancos, apesar da destruicao de boa parte do pais durante a I Guerra Mundial e em conflitos posteriores, da inacessibilidade a investimentos externos para a reconstrucao do parque industrial sovietico, do estrangulamento da economia sovietica por uma corrida armamentista indesejada por sua lideranca e, principalmente, apesar da perda de aproximadamente 15% da populacao do pais, isto e, do exorbitante numero de 24 milhoes de cidadaos sovieticos, entre militares e civis, que tombaram diante do invasor fascista. Somem-se a estes os 1,5 milhao de pessoas mortas durante a guerra civil e, no plano internacional, o bombardeio atomico da populacao de Hiroshima e Nagasaki (1945) pelos Estados Unidos. Diante da magnitude desses desastres humanos (11), nao e dificil imaginar como o tipico apologista sovietico da primeira metade do sec. XX descartava mentalmente as demandas por direitos humanos, originadas, na maioria das vezes, em hostis paises ocidentais.

Com o Relatorio Khrushchev, contudo, o movimento comunista internacional sofreria uma irreparavel cisao entre "revisionistas" e aqueles que se mantinham fieis a velha linha da nomenklatura stalinista (12). Nova composicao se processa durante a presidencia de Leonid Brejnev (19641982), com uma parcial recuperacao, ainda que mais simbolica do que real, do periodo stalinista. De toda forma, nao voltariam a ocorrer os julgamentos em massa de presos politicos ou a transferencia de milhares de pessoas para os gulags siberianos, apesar da onipresenca dos servicos de inteligencia na vida cotidiana dos cidadaos sovieticos e da estagnacao do desenvolvimento economico. No plano constitucional, a Uniao Sovietica responderia as criticas quanto a sua politica de direitos humanos, consagrando a defesa destes em sua ultima Constituicao, adotada em 7 de outubro de 1977. Registra-se, no artigo 29 desse texto constitucional (SOVIET SOCIALIST REPUBLICS, 1977), que a Uniao Sovietica, em sua relacao com os outros paises, observaria sempre o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais. Dois anos depois, veio a Guerra do Afeganistao (1979-1989), ultimo conflito "quente" no qual a Uniao Sovietica teria envolvimento direto.

Com o fim da Uniao Sovietica, desintegrada em 26 de dezembro de 1991 sob o peso de suas contradicoes internas, mas tambem a partir de uma conspirata levada a cabo por parte da propria nomenklatura que se apropriou de largas fatias do Estado, inaugurando um periodo de terrivel instabilidade e banditismo empresarial na Russia sob o governo de Boris Nicolaievitch Ieltsin (1991-1999), a defesa generica dos direitos humanos consagrou-se, na pratica, em condicao sine qua non para os "movimentos progressistas" e de esquerda em todo o mundo.

Nada mais esperado, ja que, desde os anos 1950, proliferavam os movimentos de libertacao nacional, levando ao desaparecimento dos ultimos Estados coloniais na Africa e Asia (1950-1970), ao fim do apartheid na Africa do Sul (anos 1990), ao desmantelamento das ditaduras sul-americanas nos anos 1980 e 1990 e ao fim do bloco sovietico (a partir do final dos anos 1980). Ser a favor dos direitos humanos, nesse contexto, era ser contra a tortura, o racismo, o desaparecimento forcado e a perseguicao por motivos politicos.

Essa incorporacao dos direitos humanos ao ideario de uma nova esquerda e feita, portanto, sem maiores reflexoes, como movimento "natural" de reacao e superacao de uma etapa historica com a falencia (ou degeneracao) do chamado "socialismo real" da Uniao Sovietica.

Tendo em conta esses elementos, este ensaio representa modesto esforco de reflexao que contempla o desenvolvimento dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, busca recuperar a critica que Marx (2010) fez ao conceito. O ponto de partida (13) desta reflexao situa-se entre o fim da idade moderna e o inicio da contemporanea, compreendido como o momento historico no qual surgiu, como produto do pensamento ilustrado, o que hoje se designa como direitos humanos.

Portanto, o objetivo dessa modesta recuperacao historica e refletir criticamente sobre algumas das principais fases do desenvolvimento dos direitos humanos nesse periodo especifico, que abrange desde o periodo pre-revolucionario na Franca ate os dias de hoje. Naturalmente, trata-se de uma abordagem restrita, que consiste em...

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