Lacunas no Ordenamento Jurídico. Breves Aspectos sobre a Súmula Vinculante, os Princípios Constitucionais como Fonte de Direito e os Meios de Integração do Sistema

AutorKathya Simone de Lima
Páginas86-97

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1. O problema da constatação das lacunas

Um momento fundamental na história da interpretação do Direito, na Alemanha, momento este citado por Norberto Bobbio1, foi a obra de Zietel-mann, intitulada As Lacunas do Direito. Esse trabalho, segundo Bobbio, teve extraordinária penetração no Direito positivo brasileiro, constatando que não existe plenitude na legislação positiva; por mais que o legislador se esforce para sua perfeição, há sempre um "resto" sem lei que o discipline. Na obra de Zitelmann, foi demonstrada a existência de lacunas na legislação, mas também ficou reconhecido que o Direito, entendido como ordenamento, jamais pode ter lacunas.

Existe um campo firme para a afirmação de que a lacuna é, paradoxalmente, parte presente no universo jurídico, cabendo ao intérprete, ou ao aplicador do direito, a tarefa de reconhecê-la e bem praticá-la. O legislador brasileiro tomou conhecimento desse problema, quando mandou recorrer à analogia, ao costume e aos princípios gerais do direito, havendo lacunas na lei e que o Juiz não pode deixar de sentenciar mesmo em face de obscuridade no texto legal.

O distanciamento da previsão legal decorrente do tempo de sua elaboração e o instante de sua aplicação não justificam, em nenhum momento, o raciocínio de que há lacuna na lei ou no ordenamento. A falta de precisão ou o singelo distanciamento do texto legal em face da realidade posterior exige em

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primeira análise, um juízo interpretativo, em todas as suas metodologias.

Convém, porém, abrir uma ressalva no tocante à diferenciação entre antinomia e lacuna. A primeira representa o conflito aparente entre normas, enquanto, a segunda, caracteriza a ausência de norma. Algumas situações não encontram ou não encontravam respaldo em nosso sistema jurídico, como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou a situação anterior à lei do concubinato. Já a antinomia pode ser caracterizada, por exemplo, pelo conflito entre artigos do Código Civil e a Constituição. Diante da antinomia, a interpretação da validade da norma deverá seguir os critérios cronológicos, hierárquicos e o da especialidade.

Para Maria Helena Diniz2, o direito é um dado que abrange experiências históricas, sociológicas, axiológicas, que se completam. Logo, as normas por mais completas que sejam, são apenas uma parte do direito. Isto nos leva a crer que o sistema jurídico é composto de vários subsistemas. Na Tridimensionalidade Jurídica de Miguel Reale3, encontramos a noção de que tal sistema se compõe de três subsistemas isomórficos: o de normas, o de fatos e o de valores. Logo, os elementos do sistema estão vinculados entre si por uma relação, sendo interdependentes, de forma que quando houver uma incongruência ou alteração entre eles, teremos a lacuna e a quebra da isomorfia. Lei é apenas instrumento de revelação do Direito, o mais técnico, mas apenas um instrumento de trabalho e assim mesmo imperfeito, porquanto não prevê tudo aquilo que a existência oferece no seu desenvolvimento histórico.

Com efeito, o próprio legislador brasileiro, há mais de cinco décadas, acompanhando a tradição do texto precedente, estabeleceu que sua tarefa não se esgota em si mesma, fixando que "quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (art. 4º da LICC)4.

Convém ressaltar que o organismo legislativo, poder produtor da lei, não pode dispor sobre todo o complexo das relações sociais, focalizada dentro do conjunto de seus vetores. Depreende-se, assim, que a lacuna é, paradoxalmente, parte presente no universo jurídico, cabendo ao intérprete, ou ao aplicador do direito, a tarefa de reconhecê-la e bem praticá-la.

O Juiz ao recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, por falta de ordenamento específico, pratica uma tênue faixa de legislação, conquanto, sem o atributo da generalidade, posto que seu ato só tem vigência e aplicabilidade perante o caso concreto. Não possui a qualidade erga omnes, mas tem o poder legal de substituir a omissão da lei, nesses exatos limites.

Certo é que o legislador não pode tudo prever, o que destaca que o direito, enquanto ciência, não deve ser tido por completo. Há espaços não alcançados pela malha jurídica, quer pela carência de legisladores capazes de verificar objetivamente os valores sociais suscetíveis de regramento, quer porque nenhuma regra humana é inteira e absolutamente imune a imperfeições.

Paulo Dourado de Gusmão sustenta que há lacunas na lei, nos códigos, na doutrina, na jurisprudência e no próprio direito porque não contém, muitas vezes, a solução para os casos imprevisíveis em suas respectivas épocas. Karl Engisch situa a lacuna no âmbito de integração jurídica; diz que as lacunas são da ciência do direito positivo, apreensíveis como faltas ou falhas de conteúdos de regulamentação jurídica para determinadas situações de fato em que é de esperar essa regulamentação e em que tais falhas postulam e admitem a sua remoção por meio de uma decisão judicial jurídico integradora.

2. A humanização do direito

O que ocorre é que as leis vigentes estão em permanente mora com os fatos sociais, distanciando-se do bem comum. São raros os textos legais em que a análise axiológica é firmemente refletiva, como ocorre com o Código de Defesa do Consumidor. Do mesmo modo, não são incomuns a imprevisão do previsível e a malversação do caráter seletivo da norma.

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É essencial que se levante, sem reservas, a necessidade de humanização na aplicação do art. 4º, da LICC, aferindo-se as necessidades sociais e a paz comum, restaurando-se assim, os valores atingidos pelo comportamento social não mais aceitável.

Atualmente, onde a produção legislativa acaba por modificar aquilo que bem funciona, é de império que o aplicador do direito não perca de vista as necessidades sociais e o bem comum. É de rigor que o Juiz tenha a sensibilidade para perceber a lacuna da lei, marcada sua moderação, tendo a coragem e a humani-dade necessárias para bem supri-la, na luz de cada caso concreto, e verificar as suas respectivas peculiaridades.

3. Meio supletivos das lacunas

No nosso direito, dois são os mecanismos por meio dos quais se completa um ordenamento: a autointegração e a heterointegração. A primeira é o método pelo qual o ordenamento se completa, recorrendo à fonte dominante do direito que é a lei, por exemplo, a analogia. A segunda é a técnica pela qual a ordem jurídica se completa, lançando mão de fontes diversas da norma legal, como o costume e a equidade.

Convém ressaltar que os meios de integração do direito não se confundem com as formas de expressão do direito. Embora as formas secundárias ou supletivas sirvam para complementar o sistema, essa complementação não deve ser confundida com a sua integração, que consiste na aplicação do sistema aos casos concretos.

De ordinário, o sistema é hábil para a integração direta, para que a norma jurídica (de lei, de costume, ou de outra natureza) seja aplicada de imediato ao problema a ser solucionado. Mas vezes há em que a despeito das formas completativas o sistema se mostra insuficiente ou inadequado, ocasiões em que exsurge a necessidade do recurso aos meios de integração do direito.

4. A analogia

O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil determina:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

O campo da atuação da analogia, nos termos do artigo acima citado, pressupõe, antes de mais nada, a omissão da lei, ou a falta de regra jurídica positiva reguladora de certo caso a decidir.

O argumento analógico, porém, não pode es-tender-se indefinidamente, estando ligado, por sua natureza, aos termos de que procede e entre os quais se desenvolve: a afinidade de fato e a identidade de razão. Alterar esses termos, afrouxar o vínculo que os une, para certo caso alcançar, como se nele estivesse propriamente compreendidos, não o permitem a lógica e o direito, especialmente dada àquela norma de lei, que, assinando à analogia a sua função, considera, expressamente, a hipótese de que o caso permaneça ainda duvidoso, isto é, que não baste a analogia para resolvê-lo.

O termo analogia é definido como: analogismo, conformidade, proporção, semelhança, relação. O Juiz recorre à analogia, que consiste em aplicar, a um caso não regulado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma prescrição normativa vista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado, fundando-se na identidade do motivo da norma e na identidade do fato.

Para Clóvis Bevilacqua5, a analogia é a opera-ção lógica, em virtude da qual o intérprete estende o dispositivo da lei a casos por ela não previstos. Em outras palavras, a analogia é a aplicação, a um caso não previsto, de regra que rege hipótese semelhante. As regras da tutela, por exemplo, são aplicáveis à curatela. Analogia significa aplicar às hipóteses semelhantes as soluções oferecidas pelo legislador para casos análogos. A analogia se baseia na ideia de que, se a lei disciplina de determinada maneira uma relação jurídica, deve, por igual razão, disciplinar do mesmo modo uma outra relação semelhante.

Pela analogia, muitos casos não previstos podem ser resolvidos, mas é mister que o aplicador proceda a uma investigação idônea a descobrir se nas normas jurídicas, mesmo em campo diverso do lacunoso, foi previsto...

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