Lapalissíada e vigarices

AutorCarlos Schmidt Capela
CargoProfessor de Teoria Literária no DLLV e professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador CNPq. É o atual coordenador do Núcleo e Estudos Literários & Culturais (NELIC)
Páginas5-26
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 19, n. 31, p. 5-26, 2019|
doi:10.5007/1984-784X.2019v19n31p5 5
LAPALISSÍADA E VIGARICES
Carlos Eduardo Schmidt Capela
UFSC – CNPq
RESUMO: Duas breves prosas poéticas assinadas por Manuel Bandeira embasam a intervenção pro-
posta: “Noturno da Rua da Lapa”, de Libertinagem (1930), e “O desmemoriado de vigário geral”,
de Estrela da manhã (1936). Pensando com elas e a partir delas, mão dadas ao poeta almejo
abordar a tensão polar entre um além e um aquém de sentidos. Ou, ainda, entre gestos poéticos e
críticos de remissão e omissão.
PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira; Poemas em prosa; “O desmemoriado de vigário geral”;
“Noturno da Rua da Lapa”; Transcriação.
LAPALISSÍADA E VIGARICES
ABSTRACT: Two short prose poems signed by Manuel Bandeira are based on the proposed inter-
vention: “Noturno da Rua da Lapa”, from Libertinagem (1930), and “O desmemoriado de vigário
geral”, from Estrela da manhã (1936). Thinking with them and from them, hand in hand to the poet
my aim is to approach the polar tension between a beyond and a bellow of senses. Or, still, between
poetic and critical gestures of remission and omission.
KEYWORDS: Manuel Bandeira; Prose poems; “O desmemoriado de vigário geral”; “Noturno da Rua
da Lapa”; Transcriation.
Carlos Eduardo Schmidt Capela é professor de Teoria Literá ria no DLLV e professor do Programa de
Pós-Gradua ção em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa dor CNPq. É o
atual coordenador do Núcleo e Estudos Literários & Culturais (NELIC).
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 19, n. 31, p. 5-26, 2019|
doi:10.5007/1984-784X.2019v19n31p5 6
LAPALISSÍADA E VIGARICES
Carlos Eduardo Schmidt Capela
1. A 
Toda evocação institui uma via de mão-dupla. Emblema da reiteração de
fluxos contrastantes, cada uma delas expressa o clássico confronto entre o ir e
o vir, este por sua vez acessado a partir de intersecções peculiares. A primeira
delas provém de um cruzamento com Søren Kierkegaard, que com um nada
de palavras estabelece uma oportuna distinção entre repetição e recordação.
Segundo ele ambas realizam “o mesmo movimento, apenas em direção opos-
ta; pois aquilo que se recorda foi, repete-se para trás; enquanto a repetição
propriamente dita é recordada para diante”.1
A observação do filósofo abre a possibilidade de postular uma intrigante
diferença no modo como as crianças, de um lado, e os adultos de quem elas
são os pais, de outro, tendem a experimentar o exercício da iteração. Os infan-
tes, afinal, com seu insistente clamor por uma “outra vez”, ou um “de novo”,
porventura desejem a repetição para abocanharem um recordo imediato, já
que ainda têm pouco a recordar. Quanto aos adultos, eles talvez amem recor-
dar por temor de não mais poderem reiterar. Daí o apreço geral pela repetição,
que “se é possível, faz o homem feliz, ao passo que a recordação o faz infeliz”.2
De um contraponto como tal também a poesia se aproveita. Com seus
jogos paronomásticos e suas orquestrações sonoras, potencializados na mo-
dernidade pela ênfase nos deslizamentos rítmicos e sensoriais em detrimento
dos rígidos enquadramentos métricos e rimáticos, ela permite a homens e
mulheres reencontrarem o desprendimento alegre dos petizes que todavia
os acompanham. O bem-estar proporcionado pela poética da multiplicação e
derivação de singularidades pode, ademais, ser incrementado pelo prazer de
deparar, no presente, com eventos pretéritos submetidos a essa mesma lógica
do diferimento.
Porque a mnemotecnia das iterações, ao diferi-las, é capaz de fazer oscilar
o sentido dos vetores da recordação. Estes, com isso, ao invés de se voltarem
unicamente ao passado conseguem apontar para os instantes nos quais ar-
caicos e arcaísmos não cessam de perpassar o presente. A generalização de
Kierkgaard bate então, quase de frente, com a ponderação de Deleuze, para
quem a repetição “é simbólica na sua essência; o símbolo, o simulacro, é a le-
1 KIERKGAARD, Søren. A repetição. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D’água, 2009, p.
32.
2 Ibidem, p. 32.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT