Legalidade extraordinária e constituição

AutorPedro Estevam Alves Pinto Serrano; Anderson Medeiros Bonfim; Juliana Salinas Serrano
Páginas157-189
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LEGALIDADE EXTRAORDINÁRIA E
CONSTITUIÇÃO
PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO
ANDERSON MEDEIROS BONFIM
JULIANA SALINAS SERRANO
INTRODUÇÃO
A disseminação do “novo coronavírus” SARS-Cov-2, ou
COVID-19, tomou a agenda mundial e tem sido objeto de discussão
sob diversos aspectos. O caráter absolutamente inesperado, emergencial
e exponencial impôs a adoção de medidas sanitárias, econômicas, políticas
e mesmo jurídicas de enfrentamento. No plano jurídico, a existência de
uma pandemia, nos termos reconhecidos pela Organização Mundial de
Saúde (OMS),1 inscreve-se como uma situação de emergência ou
calamidade pública de caráter extraordinário, para a qual a ordem jurídica
pode e deve oferecer respostas.
O constitucionalismo democrático prevê que, em situações de
emergência como a que atravessamos, o Estado tenha seus poderes
1 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Director-General’s opening remarks at the
media briefing on COVID-19. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/
who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-
march-2020. Acesso em: 29/03/2020.
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PEDRO E. A. P. SERRANO; ANDERSON M. BONFIM; JULIANA S. SERRANO
ampliados, podendo, inclusive, suspender parcialmente direitos
fundamentais para atender às momentâneas exigências. O Estado,
para atender à emergência sanitária que se impõe com a pandemia,
pode avocar poderes com vistas à suspensão de direitos, afastamento
regras procedimentais, tais como às relativas ao processo licitatório
para fins de contratações públicas, e mesmo compromissos orçamen-
tários, inclusive relativos aos limites impostos ao endividamento
público.
O objetivo do presente estudo é realizar o cotejamento do
fenômeno jurídico que chamamos de legalidade extraordinária, o qual
não se confunde com as medidas de exceção clássicas baseadas na ação
arbitrária de persecução de inimigos, da suspensão de direitos por
motivos políticos e de disputa de poder. A exceção clássica, confor-
me demonstraremos, caracteriza-se pela anomia, ao passo que a lega-
lidade extraordinária ou o regime jurídico especial, estabelecido para
reger uma situação excepcional, insere-se nos quadrantes do próprio
Direito.
Também consoante será demonstrado, os poderes excepcionais
são vinculados ao estritamente necessário à solução da emergência. Se
o Poder Público extrapola os poderes-deveres excepcionais que lhe são
atribuídos para esse fim, ele comete um ilícito. Por outro lado, se deixa
de exercê-los, omitindo-se nas suas funções, também comete ilícito que,
dependendo das circunstâncias, pode até ser caracterizado como crime
de responsabilidade (a infração político-administrativa de impeachment
prevista nos arts. 85 e 86 da Constituição da República e regulamentados
pela Lei n. 1.079/1950) ou mesmo contra a humanidade, consoante
Estatuto de Roma.
1. O NOVO CORONAVÍRUS E SUAS REPERCUSSÕES
SANITÁRIAS, SOCIAIS E ECONÔMICAS
A pandemia decorrente do novo coronavírus acarretou singulares
repercussões sanitárias, sociais e econômicas, as quais se amalgamam
para redefinir, momentaneamente, o próprio papel do Estado brasi-
leiro. A violação aos preceitos fundamentais que garantem o acesso
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universal e igualitário às ações e serviços de saúde é notoriamente
histórica no Brasil e ganhou contornos ainda mais fatais com a pan-
demia. Acidulou-se o cenário de grave e massiva violação de direitos
fundamentais e sociais, decorrentes de falhas estruturais em políticas
públicas de saúde. Portanto, a pandemia, sob vários aspectos, mas
sobretudo do ponto de vista do sistema de saúde, reflete nossa pro-
funda desigualdade social.
Conforme estimado por especialistas, cerca de 15% dos pacientes
infectados precisam ser internados em leito qualificado como de Unidade
de Tratamento Intensivo (UTI), sendo que também de acordo com a
Associação de Medicina Intensivista Brasileira (AMIB),2 a quantidade de
leitos existentes no Brasil é próximo de dois para cada 10 mil habitantes,
cumprindo a recomendação da OMS. No entanto, a distribuição desigual
entre as redes pública e privada, além da forte concentração territorial,
torna a situação preocupante. Segundo dados da entidade, apenas 44% das
UTIs são do âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual é responsável
pela assistência de três quartos da população.
Nesse contexto, diversos preceitos constitucionais estão em risco,
especialmente aqueles relativos ao direito social à saúde (art. 6º; art. 23,
inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art. 198; art. 199
e art. 200), ao direito fundamental à vida (art. 5º, caput; art. 227 e art.
230), ao direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput, e art. 196), ao
passo que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República
Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III) e, ainda, é objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa e
solidária (art. 3º, inciso I).
Diante desse cenário, a legalidade extraordinária é, sem dúvida,
um dos remédios mais poderosos para conter o avanço da pandemia. Ela
confere ao Estado o dever-poder de adotar as providências necessárias
2 CAMBRICOLI, Fabiana. “Mais demandado em caso de surto de coronavírus, SUS
só tem 44% dos leitos de UTI do País”. O Estado de São Paulo, São Paulo, mar. 2020.
Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,rede-mais-demandada-em-
caso-de-surto-de-coronavirus-sus-so-tem-44-dos-leitos-de-uti-do-pais,70003230123.
Acesso em 16/04/2020.

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