Lei de anistia nos tribunais superiores: o estado da arte do necessário diálogo entre jurisdições no Brasil

AutorAndréa Regina de Morais Benedetti/Tatyana Scheila Friedrich
Páginas141-154

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1. Introdução

A coexistência de duas decisões no Brasil acerca da Lei de Anistia é um assunto caro ao debate sobre o direito nos t ribunais superiores. A questão envolve discutir qual decisão, sobre a anistia, deve prevalecer internamente: a do Supremo Tribunal Federal (STF) ou a da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)? Para além de uma resposta definitiva e até mesmo reducionista, o presente artigo pretende explorar a questão do necessário diálogo entre jurisdições no país, de modo a delinear o estado da arte do legado daquelas decisões.

A controvérsia judicial, portanto, envolveu resolver se a Lei 6.683/79, conhecida como Lei de Anistia, promulgada no apagar do regime militar no Brasil, anistiou ou não os agentes políticos responsáveis por crimes durante a ditadura e como foi recepcionada pela nova ordem constitucional.

Posta a discussão à análise pelo Supremo Tribunal Federal, a corte constitucional brasileira entendeu, em 29 de abril de 2010, que a lei anistiou também os torturadores que atuaram contra movimentos de resistência à ditadura militar, como fruto de um acordo político.

Em 24 de novembro de 2010, contudo, no caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) versus Brasil, o país foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que possui jurisdição obrigatória em território brasileiro, por aplicar a Lei de Anistia como empecilho à investigação,

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julgamento e punição dos crimes de violação de direitos humanos e garantias judiciais ocorridos durante a ditadura militar.

Diante desse choque de decisões, o artigo enfrenta a questão do diálogo de jurisdições sob o crivo de uma concepção contemporânea de direitos humanos, buscando colaborar para o aperfeiçoamento crítico do estudo do direito internacional dos direitos humanos no Brasil.

2. ADPF 153, Gomes Lund e seus reflexos nos tribunais

A Lei 6.683/79, conhecida como Lei de Anistia, foi promulgada pelo então presidente João Batista de Figueiredo, em 28 de agosto de 1979, no seio do movimento social pela anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos, banidos e exilados, no ocaso do regime militar no Brasil.

Nos termos da lei, concedeu-se anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, come-teram crimes políticos ou conexos com estes; crimes eleitorais; aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares.

A controvérsia envolve a inserção do § 1º no artigo 1º, que considera conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, sendo que após o advento da Constituição de 1988 ganhou relevância a discussão pública acerca do alcance da referida lei, no sentido de se estabelecer se houve ou não anistia aos agentes políticos responsáveis por crimes durante a ditadura e sua recepção pela nova ordem constitucional.

Em 21 de outubro de 2008 o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153) objetivando a declaração pelo Supremo Tribunal Federal do não recebimento, pela Constituição da República do Brasil de 1988, do disposto no § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia).

A OAB requereu, assim, ao STF que, dando interpretação conforme à Constituição, declarasse que a anistia concedida pela Lei 6.683/79 aos crimes políticos ou conexos não se estenderia aos crimes comuns praticados pelos

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agentes de repressão contra opositores políticos durante o regime militar no Brasil (1964-1985).

Em 29 de abril de 2010, decidiu o STF que a lei anistiou também os torturadores que atuaram contra movimentos de resistência à ditadura militar. De excertos da ementa da ADPF 153 exsurgem os principais argumentos, especialmente da relatoria:

A decisão do STF considerou que [...] O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera”. Para o STF a expressão “crimes conexos a crimes políticos” conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. [...] A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados – e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou – pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. [...] A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes adotada pela Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 – e a Lei
n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição – não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas.
[...] Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá – ou não – de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.
[...] Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura (STF, 2010).

Paralelamente, já em instância internacional, no citado caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) versus Brasil, em sentença proferida em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, na medida em que

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as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. [...] O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial [...] pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.
[...] O Estado é responsável pela aplicação da Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e punição dos crimes – violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25), em combinação com a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção e o dever de adotar disposições de direito interno (artigos 1.1 e 2), em detrimento dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada (CIDH, 2010, p. 114-122).

Assim, no caso Gomes Lund, a CIDH condenou o Estado brasileiro pelo desaparecimento...

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