A lei de cotas por um fio: o retrocesso social atual/Universities' admission quotas in danger: the current social setback.

AutorPinheiro, Carina Lilian Fernandes

Introdução

O projeto do governo eleito no Brasil para o período de 2019 a 2022 possui enfoque econômico, de extrema direita, neoliberal, que vangloria a ditadura e que credita o preconceito ao "coitadismo" (1). Por isso, nesse contexto, é preciso entender e refletir sobre as perspectivas e conjecturas políticas e sociais que estão postas e expostas após a ascensão do presidente eleito, na tentativa de buscar caminhos de luta e resistência.

Para tentar colaborar com essa reflexão, neste artigo objetivamos apresentar e discutir algumas notícias e reportagens de diversos jornais e portais eletrônicos, no período de maio de 2018 a março de 2019, que contenham alguma indicação de como o novo governo pretende lidar e/ou conduzir as políticas sociais no país. Dessa maneira, partiremos de uma análise do que tem sido veiculado e pensado sobre a política de cotas e os riscos de sua extinção.

A política de cotas faz parte das chamadas ações afirmativas, criadas com o intuito de reparar/compensar desigualdades sociais históricas e discriminações sofridas por uma parcela da população, sejam relativas à etnia, gênero ou classe social, entre outras questões. Foi nesse sentido que foram criadas as cotas para ingresso nas instituições federais de ensino superior em 2012 e, posteriormente, em 2014, as cotas para inscrição em concursos públicos.

No entanto, essa política, assim como outras políticas sociais, vem sendo alvo de uma série de "ataques" e críticas. Várias notícias e reportagens foram publicadas sobre o assunto antes, durante e após a campanha eleitoral de 2018, contendo até mesmo declarações do próprio presidente eleito com apontamentos e/ou fortes indícios de que as cotas não são bem-vindas ou bem vistas pelo atual governo. Além disso, foram protocolados projetos de lei, em 2019, tanto em âmbito municipal, quanto estadual e federal, solicitando o fim das cotas.

Diante desse cenário de risco iminente, é possível perceber a importância de conhecer o que está sendo veiculado sobre o assunto e de analisar a conjuntura política atual, para entender o direcionamento social do governo eleito e a ameaça para as cotas. É primordial destacar que metodologicamente foram escolhidas notícias e reportagens que retratassem mais claramente as intenções do governo, com declarações do próprio Presidente Bolsonaro, bem como de fontes diversas, para uma perspectiva de reflexão mais ampla do que está sendo divulgado.

Essa reflexão, a partir das notícias e reportagens de fontes diferentes, vai possibilitar um maior entendimento desse momento atual e, possivelmente, uma ideia do que está por vir. É preciso entender os rebatimentos e consequências do que está sendo "plantado", para que não haja surpresa na "colheita", sobretudo porque esse direcionamento social do governo importa a todos e vai determinar e implicar diretamente no futuro do país.

A política de cotas: o que representa?

A política de cotas faz parte das chamadas ações afirmativas, as quais têm o objetivo de reduzir, minimizar e combater qualquer tipo de desigualdade social e discriminações sofridas por uma parcela rejeitada da população, em detrimento de raça, etnia, gênero, opção sexual, religião, deficiência, idade ou qualquer outra diversidade.

As ações afirmativas são bastante diversas e englobam: a concessão de preferências, a fixação de cotas, metas, incentivos ou tratamento jurídico diferenciado a um determinado grupo alvo de práticas discriminatórias ou com necessidades específicas (MENEZES, 2003). De acordo com o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMMA, 2017, n. p.):

Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural. Os Estados Unidos da América foi o primeiro país a adotar políticas afirmativas. No Brasil, elas são uma reivindicação dos movimentos sociais, sendo estabelecidas a partir de uma longa jornada e de duras lutas. A construção desse debate começou mais efetivamente após a redemocratização e impulsionou o poder público a instituir ações, leis e políticas na tentativa de diminuir a discriminação em prol da concretização da igualdade.

No que diz respeito à política de cotas no sistema educacional, o primeiro país a adotar um sistema de cotas raciais para acesso ao ensino superior foi a Índia, na década de 1930, para aqueles considerados de casta mais baixa, os chamados "Dalits". As cotas continuam em vigor no país e foram introduzidas na Constituição em 1949 (NASCIMENTO, 2016).

No Brasil, foi promulgada, em 1968, a primeira lei que estabelecia algum tipo de cota, uma conquista ainda muito distante da luta por acesso à educação dos segmentos historicamente discriminados. Isso porque a Lei no 5.465 (BRASIL, 1968), que dispunha sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola, ficou mais conhecida como "Lei do Boi", por beneficiar os filhos dos grandes proprietários rurais.

Essa lei foi revogada em 1985, mas a partir dela o debate se intensificou, ganhando espaço público. A ideia de democracia social e racial começou a ser questionada e vários paradigmas históricos se enfraqueceram. Com isso, cresceram as cobranças para que o governo tomasse algumas medidas, e as chamadas políticas afirmativas ganharam vez e voz.

As políticas de cotas mais conhecidas no país são as que tratam do ingresso nas instituições federais de ensino superior e em concursos públicos, e sempre causaram muita controvérsia. Logo correntes opostas se revelaram: uma contrária, que defende a meritocracia; e outra a favor, a qual defende que os direitos e oportunidades não são iguais no Brasil.

Juridicamente, as cotas e as políticas afirmativas foram justificadas, quando da sua criação legal, pela igualdade material. O entendimento do Superior Tribunal Federal (STF) é de que as cotas não são inconstitucionais porque no Brasil o direito à igualdade é material e não formal ou estático (COGO, 2015). Isso quer dizer que nem todas as pessoas são consideradas iguais, ou que existem desigualdades que devem ser consideradas para se atingir a real equidade. Segundo Gomes (2001), na igualdade material ou substancial são avaliadas as desigualdades concretas da sociedade, de modo que as situações desiguais sejam tratadas de maneira desigual, na busca pela promoção da justiça social.

Além disso, é imprescindível, para entender a necessidade das cotas, conhecer e compreender as peculiaridades do contexto histórico brasileiro perpassado por profundas desigualdades sociais, pelo racismo, pelo preconceito à diversidade e pelo escravismo. Ou seja, para conseguir desvelar o surgimento das cotas no Brasil, temos que levar em consideração todos esses aspectos da nossa história, pois eles repercutem e respingam na realidade social até hoje. Nesse processo, entender a diferença elucidada por Ianni (2004, p. 23) entre os termos raça e racismo é crucial:

A raça, a racialização e o racismo são produzidos na dinâmica das relações sociais, compreendendo as suas implicações políticas, econômicas, culturais. É a dialética das relações sociais que promove a metamorfose da etnia em raça. A 'raça' não é uma condição biológica como a etnia, mas uma condição social, psicossocial e cultural, criada, reiterada e desenvolvida na trama das relações sociais, envolvendo jogos de forças sociais e progressos de dominação e apropriação. [...] Racializar ou estigmatizar o 'outro' e os 'outros' é também politizar as relações cotidianas, recorrentes, em locais de trabalho, estudo e entretenimento; bloqueando relações, possibilidades de participação, inibindo aspirações, mutilando práxis humana, acentuando a alienação de uns e outros, indivíduos e coletividades. A partir da análise de Ianni (2004) podemos depreender como o racismo está arraigado cultural e historicamente no Brasil, e o quão ele é naturalizado, banalizado e até desacreditado no cotidiano dos brasileiros. Essa ideia de estigmatização citada pelo autor também...

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