A Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) e o Contrato de Trabalho Intermitente: Breves Considerações

AutorSergio Roberto de Mello Queiroz
Páginas87-99

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1. Introdução

Com a edição da Lei n. 13.467/2017, que aprovou a chamada Reforma Trabalhista, foi introduzido no sistema justrabalhista brasileiro, entre tantas alterações significativas no campo do direito material e processual do trabalho, a figura do contrato de trabalho intermitente.

Intermitente, do latim intermittens, significa algo interrompido ou descontinuado. Em linhas gerais, a partir da nova diretriz legislativa, portanto, o contrato de trabalho intermitente é modalidade que, escapando ao enquadramento jurídico histórico, não tem na ‘continuidade’2 da prestação dos serviços um de seus requisitos caracterizadores.

A introdução do contrato de trabalho intermitente pela Lei da Reforma Trabalhista, pois, significa verdadeira quebra de paradigma para o Direito do Trabalho pátrio, na medida em que representa completa ruptura com o modelo de contrato laboral consagrado por aqui, impondo uma necessária releitura da concepção jurídica de jornada de trabalho, assim como da estreita relação entre jornada de trabalho e salário, dois elementos cruciais para o desenvolvimento e para a consolidação do Direito do Trabalho como o conhecemos.

O propósito deste ensaio, longe de pretender esgotar as discussões sobre o tema, é analisar o contrato de trabalho intermitente com vistas a compreender suas características principais e seus possíveis reflexos no mundo do trabalho, sempre sob a perspectiva, por óbvio, de lançar algumas questões de ordem prática que inevitavelmente, cedo ou tarde, desaguarão nos tribunais a exigir dos operadores do direito o seu enfrentamento para a solução de múltiplos potenciais conflitos originários desse novo modelo contratual.

2. A medida provisória 808/2017 e sua eficácia

Antes de ingressarmos na seara própria da matéria que constitui objeto deste ensaio, é importante destacar que poucos dias depois da entrada em vigor da Lei
n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista – em vigor desde
11.11.2017), que promoveu inúmeras e substanciais alterações na legislação trabalhista, muitas delas polêmicas e alvo de severas críticas de boa parte da doutrina e daqueles que lidam com o universo justrabalhista – e talvez exatamente em razão de tais críticas – o governo editou a Medida Provisória 808/2017, em vigor a partir de 14.11.2017, promovendo modificações em muitas das regras legais recém introduzidas pela Reforma Trabalhista.

Assim como aconteceu com outros aspectos da reforma, a disciplina legal sobre o trabalho intermitente foi diretamente afetada pela edição da MP 808/2017, em aspectos que serão abordados mais adiante.

Não obstante, cabe registrar que em 23.04.2018 expirou o prazo constitucional de 120 dias para que a MP 808/2017 (art. 62, §§ 3º e 7º, CF), em vigor desde
14.11.2017, fosse apreciada pelo Congresso Nacional.

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A não apreciação da MP pelo parlamento acarretou, pelas regras constitucionais, a perda de sua eficácia3.

Como conseqüência natural da perda de eficácia da MP 808/2017, que alterou diversos dispositivos da CLT, voltam a valer as alterações originais promovidas na CLT pela Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), ficando sem efeito, inclusive, as alterações trazidas pela referida MP.

Por outro lado, à luz do contido no art. 62, § 3º, da CF, a perda de eficácia da MP, ante sua não apreciação pelo parlamento, impõe ao Congresso Nacional “disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas dela decorrentes”.

Até o momento do fechamento desta edição, o Governo não sinalizou com a publicação do decreto legislativo. É importante deixar claro que, caso não venha a ser editado o decreto legislativo no prazo de até 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia da MP, “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”, nos precisos termos do art. 62, § 11, da CF. Vale dizer, a MP perdeu a eficácia, mas continuaria a disciplinar as relações jurídicas constituídas ou decorrentes de atos praticados no período em que esteve em vigência.

3. O trabalho intermitente e o direito comparado: uma visão geral

Embora se trate de uma significativa inovação no sistema justrabalhista brasileiro, o contrato de trabalho intermitente não pode ser tido propriamente como uma novidade no mundo jurídico, na medida em que já vem sendo adotado (com uma ou outra particularidade, mas rigorosamente calcado na ideia de ausência de continuidade na prestação do trabalho) em alguns países, já há um certo tempo em alguns casos.

A ideia de trabalho intermitente apresenta-se essen-cialmente, a rigor, como uma alternativa em tempos de crise econômica, com vistas a assegurar (ou ao menos contribuir para isso) a ‘sobrevivência’ das empresas, de um lado, e os empregos formais dos trabalhadores, de outro.

Assim, o trabalho intermitente representa uma flexibilização da concepção clássica de duração de trabalho e da obrigação empresarial com o pagamento do correspondente salário, abandonando a ideia de um contrato com carga horária previamente ajustada entre as partes e com garantia, para o trabalhador, de um salário certo e previamente assegurado.

A característica principal do contrato intermitente, pois, é a imprevisibilidade do trabalho, e por consequência, também do salário. Embora as partes mantenham um vínculo contratual de emprego, não há para o empregador a obrigação permanente de oferecer trabalho ao seu funcionário. E se não há trabalho, também não há salário.

O elemento central desse modelo contratual reside na ‘permissividade legal’, digamos assim, dada ao empregador para convocar o empregado de acordo com a demanda que se apresente, pagando-lhe salário proporcional às horas efetivamente trabalhadas. Quase que como um corolário direto, é intuitivo concluir que o empregador não está, em regra (ressalvadas algumas particularidades das legislações nacionais) submetido a uma diretriz de periodicidade ou de carga horária mínima para a convocação do trabalhador intermitente.

Em resumo e no essencial: se há demanda, convoca o trabalhador e paga pelas horas trabalhadas. Se não há demanda... paciência; não há convocação, não há serviço a ser prestado, não há salário.

Os defensores do trabalho intermitente como uma alternativa adequada sugerem que essa modalidade contratual impediria o despedimento do empregado, o que seria inevitável se a empresa, sem uma demanda permanente e estável, tivesse que continuar pagando salários integralmente aos seus funcionários.

De outro lado, os críticos têm sustentado que o contrato intermitente, sem qualquer restrição para a sua utilização, servirá tão somente para acentuar a precarização das relações de trabalho, apresentando-se como alternativa que apenas beneficia o empregador, que sempre terá a sua disposição um contingente formado por trabalhadores que estarão formalmente empregados, mas sem qualquer garantia de renda para a sua subsistência.

Deixemos essa análise para um momento posterior, mesmo porque essa avaliação precisa ser pontual e calcada nas condições específicas da legislação examinada. Disso cuidaremos mais adiante.

Direcionando o foco para o Direito Comparado, pode-se dizer que o modelo mais conhecido ou, ao menos, mais referido entre nós nesses momentos iniciais de compreensão, assimilação e interpretação dos novos regramentos trazidos com a Reforma Trabalhista é o

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contrato a zero hora (zero-hours contract), implementado há mais de duas décadas no Reino Unido (cf. art. 27A do Employment Rights Act 1996 da Inglaterra)4.

O modelo britânico de trabalho intermitente é caracterizado pela completa ausência de previsibilidade ou de diretrizes mínimas quanto à carga horária do empregado, ficando o empregador em posição de extrema comodidade nesse aspecto, em contrapartida à significativa vulnerabilidade do trabalhador, que fica permanentemente à disposição para uma convocação do empregador. Nessas condições, o trabalhador pode ficar dias, semanas ou meses sem ser convocado (sem receber salário, portanto), embora o vínculo contratual se mantenha íntegro.

Estudos mostram que o trabalho intermitente, na Inglaterra, tem sido sinônimo de redução de custos para as empresas e de precarização e perdas para os trabalhadores, que nessa modalidade de contrato ganham, em média, 38% menos que os demais trabalhadores. Esse tipo de contrato tem sido considerado satisfatório, do ponto de vista social, apenas para uma ínfima parcela de pessoas que pretendem fazer “bicos” ocasionais para complementar a renda ou enquanto estudam.5

A Espanha é outro país que adotou o contrato de trabalho intermitente. O modelo espanhol, contudo, apresenta-se menos ‘agressivo’, digamos assim, que o modelo britânico. Isso porque o trabalho intermitente na Espanha deve observar alguns parâmetros legais quanto à carga horária e aos períodos de prestação de serviços que o tornam mais estável e previsível.

O trabalho nessa modalidade de contrato deve ser realizado “de modo cíclico, com repetição em datas certas, distinguindo-se dos contratos eventuais pela incerteza ou extraordinariedade do serviço que envolve os contratos eventuais, ou ainda os contratos temporários6.

Outra circunstância vista como uma vantagem é que o trabalhador tem a garantia de ser convocado nos períodos do ano em que a atividade é retomada, o que representa, de algum modo, uma situação mais estável para o trabalhador, ao mesmo tempo em que para a empresa há o benefício de ter uma equipe de trabalho ‘fixa’ para os meses de atividade...

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