Lei de proteção às vítimas, testemunhas e acusados colaboradores

AutorJosé Carlos G. Xavier De Aquino
Ocupação do AutorDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Páginas163-242
Capítulo XVI
LEI DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS,
TESTEMUNHAS E ACUSADOS COLABORADORES
1. SISTEMAS PENAIS
O processo penal, a depender dos princípios que venham a infor-
má-lo, pode ser acusatório, inquisitivo ou misto.
O sistema acusatório possui raízes na Grécia e na Roma Repu-
blicana e consiste em um modelo que tem “o juiz como um sujeito
passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um de-
bate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova,
desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e
solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção”1.
Tem-se, portanto, a separação entre as funções de acusar, defen-
der e julgar, todas essas conferidas a personagens distintos, bem como
a existência de procedimentos que valorizam o contraditório como
método de busca da verdade.
Por sua vez, chama-se inquisitório (ou inquisitivo) o sistema que
se desenvolveu, primeiramente, na Roma Imperial e que põe em evi-
dência estruturas judiciárias burocratizadas, como também procedi-
mentos fundados nos poderes instrutórios do juiz.
Nesse modelo, o magistrado abandona sua posição de árbitro im-
parcial, concentrando em si as funções de acusar, defender e julgar, por
meio de um procedimento escrito e sigiloso, excluindo ou limitando o
1 Luigi Ferrajoli, Direito e razão – teoria do garantismo penal, 4ª.ed., São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2014, p. 519-520.
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A ProvA TeSTemunhAl no ProceSSo PenAl BrASileiro
contraditório e a ampla defesa. Tem-se, dessa forma, a mitigação de
direitos e garantias individuais em favor de um suposto interesse social
na punição do acusado.
Com efeito, o processo penal brasileiro tem natureza mista. Nesse
sentido, a fase preliminar investigatória ca a cargo da Polícia Judiciária,
sendo certo que tal procedimento tem caráter eminentemente inqui-
sitório, não se observando, desta feita, o postulado nullum judicium sine
accusatione. Todavia, uma vez recebida a queixa ou a denúncia, inicia-se
a instrução criminal e, neste passo, aplica-se o modelo acusatório, com
todas as garantias constitucionais previstas em nossa Carta Política.
Com o advento da justiça negociada, que veio para combater com
mais agilidade esse, por assim dizer, “processo sem processo” que, na
verdade, tem características eminentemente inquisitivas2 e, em nome da
celeridade processual que, no mais das vezes, faz ouvidos surdos às for-
malidades exigidas no sistema acusatório, busca a todo custo a obtenção
da admissão por parte do delator da prática delitiva, almejando informa-
ções que possam resultar no desmantelamento da organização criminosa.
Mesmo entre aqueles que defendem a justiça negociada admitem que
esse novo modelo macula os corolários do devido processo legal, tendo
em vista o abandono dos postulados da ampla defesa e do contraditório.
A justiça negociada traz em seu bojo princípios que divergem do
processo tradicional, sendo certo que prevalece a informalidade, a di-
minuição das garantias processuais antefaladas e, sobretudo, pelo fato
de que a verdade real é colocada em segundo plano. Em outros termos,
a conssão do delator, ainda que mentirosa, é o quanto basta para a
formalização do acordo, abstração feita se a questão da mentira, per fas
et nefas, saltar fora.
Vê-se, portanto, que o mote da delação premiada que, diga-se, foi
baseada no plea bargaining, instituto admitido em alguns estados norte
-americanos, é a conssão, fazendo-me lembrar de Franz Kafka que,
na sua obra “O Processo”, muitos anos antes e como num exercício
de futurologia, delineia perfeitamente o instituto em comento, ao ob-
temperar:
2 Nesse tocante, impende destacar que, embora as características da delação sejam inqui-
sitivas, elas não retiram do processo penal o seu caráter público.
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cAPíTulo Xvi
lei de ProTeção àS víTimAS, TeSTemunhAS e AcuSAdoS colABorAdoreS
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“No me pregunte nombres, pero corríjase de su defecto, no sea tan
obstinado. No se tiene armas contra esta justicia, es preciso confesar.
Conese em la primera ocasión y solamente después podrá usted tratar
de escaparse, pero solamente después. Y aun entonces solo lo consegui-
rá si alguien le ayuda”3
Observo que o problema do patteggiamento, nomenclatura que se
dá à justiça negociada na Itália, encontra o primeiro obstáculo na na-
tureza jurídica do processo penal brasileiro, porquanto como se disse
acima, embora nosso sistema seja misto, para que ele tenha valia é
mister que se submeta ao princípio do contraditório, da ampla defesa,
do due process of law e a todas as demais regras a eles inerentes, quando
então o nosso processo se torna proeminentemente acusatório puro.
Da mesma forma, não vejo empenho seja do legislador ou dos
doutrinadores no sentido de assegurar àquele que foi delatado as ga-
rantias constitucionais retro mencionadas. Há um iter a ser trilhado e
nele se percebe que o legislador se preocupou muito mais com o de-
lator do que com o delatado, haja vista que o princípio da individuali-
zação da pena, bem como o consectário da proporcionalidade, fere a
expectativa de justiça tradicional, pois quem delata recebe um prêmio.
Sei que, se por um lado, nos dias que correm, a simplicação dos
processos é medida imperiosa; por outro, devemos encontrar um meio
termo, de molde a não desprezar as formalidades previstas para o ajui-
zamento da ação.
A controvérsia é tamanha, mesmo por que o juiz não mais decide
solitariamente, mas depende, para entregar sua prestação jurisdicional, de
ajuda de terceiros que jamais se encontraram no vértice do triângulo do
actum trium personarum. Ademais, verica-se que na delação premial se
muito mais importância para o efeito prático do, por assim dizer, processo.
Esse novo design da justiça brasileira, ao introduzir elementos estranhos a
ela, proporciona meios que agilizam os “processos”, dando de ombros,
isso não se pode negar, ao delatado, em homenagem a uma justiça rápida.
Muito embora existam operadores do Direito que se posicionam
em um sentido e outros no sentido inverso, acredito na nova forma de
3 Franz Kafka, El processo, 1ª ed., Buenos Aires, Editorial Clásicos Losada, 2006, p. 148.
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