Liberdade e equanimidade: elementos axiológicos estruturantes das democracias contemporâneas

AutorNatercia Sampaio Siqueira - Marcelo Sampaio Siqueira
CargoDoutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
Páginas47-61

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Considerações iniciais

A axiologia que hoje se faz presente no cenário internacional, bem como internamente a cada estado nação, possui comprometimento especial com a liberdade e igualdade. A justificativa para tal fato se estende desde argumentos antropológicos, aos de caráter contratualista, cultural, discursivo e de direito natural.

Os autores do presente artigo irão utilizar-se da perspectiva cultural, a qual se filiou Rawls no seu liberalismo político: a axiologia da equanimidade e liberdade é aquela própria à cultura pública de uma sociedade democrática. Dito isto, é preciso chamar atenção para a complexidade conceitual dessa afirmação. De primeiro, importa ressaltar que a justificativa de uma axiologia específica à cultura democrática pressupõe conteúdo material para democracia que não se esgota no seu aspecto formal: a cultura pública a apreende como carregada de significação axiológica que qualifica a estrutura social que se compreende democrática.

Há um ciclo de implicações: a cultura pública nas sociedades democráticas atribui conteúdo material à democracia, o que revela, por sua vez, a expectativa de que as estruturas sociais elementares, tais como o direito, a economia, a política e mesmo a família, sejam organizadas e vivenciadas a partir da axiologia democrática. É esse, precisamente, o objeto geral da presente pesquisa: tratar dessa axiologia imanente à democracia, que se estrutura sob dois eixos, a liberdade e a equanimidade.

Ocorre que a liberdade e a equanimidade são valores de grande vagueza semântica; que servem a diferentes compreensões e significações. É preciso então buscar as possíveis significações compatíveis à realidade das democracias ocidentais. Para tanto, o presente artigo se propõe a expor a mutabilidade conceitual da liberdade, posteriormente ao que se detém sobre as teorias e eventos históricos que levaram à construção do conceito de liberdade como racionalidade e capacidade, que é o que se encontra entranhado na cultura e instituições estruturantes das sociedades democráticas.

Em um segundo momento, explora-se a equanimidade ou equidade como medida da liberdade na realidade de alteridade; ou seja, no contexto de relacionamentos de interdependência entre diferentes. Por este momento, frisa-se que o esforço de equanimidade implica omissões e ações estatais; as últimas voltadas, especialmente, à garantia da justa oportunidade, a cada pessoa, para desenvolver-se e realizar-se.

Explorado que seja o conteúdo da equanimidade e liberdade, argui-se que os referidos valores devem ser empregados como elementos de integração na análise de vários dos pontos de tensão que impregnam a estrutura basilar das democracias contemporâneas: aborto, casamento e filiação homossexual, relacionamentos poliafetivos, práticas religiosas e culturais a envolver maus tratos de animais, dentre outros. Isso, porque a equanimidade e liberdade consistem em guias metodológicos que permitem a apropriação e a realização de conceito material da democracia.

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1 As várias possibilidades semânticas para liberdade

Sobre o termo liberdade várias concepções foram trabalhadas ao longo da história. Tem-se desde a perspectiva absenteísta da liberdade, a significar que a pessoa é livre à medida que não sofre interferências e obstáculos nas suas ações, até outra na qual a ênfase encontra-se na capacidade da pessoa de fazer o que quer da vida. Igualmente célebre é o conceito de liberdade como a participação na construção da vontade à qual se está subordinado, assim como a sua compreensão como exercício da racionalidade ou como autonomia ética pelo imperativo categórico.

Cada uma dessas concepções da liberdade, por sua vez, reflete o pensamento imanente a uma época. A liberdade como participação na política remete-se ao ideal grego, assim como à aspiração liberal e mesmo pré-liberal à agência política, a manifestar-se no contrato social. Já a concepção da liberdade como abstenção firma-se no liberalismo burguês oitocentista, ao passo que a sua compreensão como o exercício da razão na construção reflexiva de um modelo de vida que seja o pertinente à história da pessoa, ganha fôlego com a filosofia do final do século XIX e com a psicanálise do início do século XX. É bem verdade que se pode encontrar em Kant a gênese do pensamento que trata a autonomia como racionalidade, não obstante ele a trabalhar sob o desafio da ação correta e não mediante a problemática existencial de construir um modelo de vida que seja o pertinente a cada pessoa.

Ao final, a sensibilidade às desigualdades sociais e pessoais, ao tempo em que se introduz a perspectiva da dignidade, lança as sementes ao conceito de liberdade como capacidade: ser livre seria ter capacidade ou aptidão para construir um estilo de vida coerente aos interesses e gostos pessoais. E tanto a capacidade, como o conceito de liberdade a significar construção reflexiva de um modelo de vida que seja o pertinente à pessoa, são as elaborações semânticas que se fazem presentes nas atuais Constituições democráticas ocidentais, bem como nos documentos e acordos internacionais.

Mas para que se aproprie do contexto acima delineado, é importante que se detenha, ainda que de forma simplificada, no processo de mutações semânticas pelo qual passou a liberdade. Isso, para que se possa compreender quando, como e porque ela adquiriu a concepção pela qual hoje é apropriada por grande parte da cultura pública democrática ocidental, internamente a cada Estado Nação e mesmo internacionalmente.

1. 1 Liberdade como autonomia

A liberdade adquire significação elementar à mentalidade ocidental a partir do séc. XVIII, com Kant. Contudo, ainda ao longo de uma filosofia eminente teleológica, na qual a ênfase se dava na ordenação em conformidade à vontade divina ou à natureza, o direito civil embrionário, ao trabalhar conceitos como

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contratos e atos jurídicos, abre caminho para a agência que caracteriza a liberdade humana. Os institutos elementares do direito civil incorporam a perspectiva do homem como agente apto a uma “razão exercida de maneira adequada” (O’DONELL, 2011, p. 47): “esse indivíduo não é uma coisa [...] é um ser definido, amparado e habilitado legalmente” (O’DONELL, 2011, p. 48).

Por outras palavras, o contrato, ao albergar direitos e obrigações, pressupõe um ser capaz do exercício adequado da racionalidade, o que justifica a construção do instituto do ato jurídico: o ordenamento jurídico vincula a pessoa à manifestação de sua vontade por lhe reconhecer a faculdade da racionalidade. Eis a semente para que se comece a compreender o homem como agente e não paciente da vontade divina ou da ordem cósmica. Mas a estrada para que se reconheça a agência humana na economia, na política e na ética é longa, estendendo-se e circundando vários momentos históricos.

Começa-se pela esfera política: aqui, a agência humana foi introduzida no ambiente moderno de extrema insegurança pública. À época, o desafio para manter a ordem interna e a soberania externa encontrava no poder central e personificado a sua melhor opção. Porém, as justificativas para a personificação do poder estatal afastaram-se do pensamento passivo e teleológico para abraçar a perspectiva da agência.

Disso, é exemplo a teoria contratual na pena de Hobbes; ainda que por meio dela se tenha tentado justificar o absolutismo, o contrato social revelou-se importante etapa da agência política. A partir de Hobbes, o poder não mais se explica em fontes externas ou estranhas à sociedade, como a vontade divina ou a ordem cósmica, mas na vontade igual e recíproca de cada um de seus membros. Referida ficção filosófica, como justificativa da soberania, é tomada emprestada por importantes filósofos políticos da modernidade e contemporaneidade, como Locke, Rousseau e Rawls, tendo marcado a perspectiva do homem como nascente do poder sobre si exercido.

Já a agência econômica legitima-se a partir de Adam Smith e de seus escritos, que sistematizaram a mentalidade contrária ao mercantilismo absolutista, que era conforme a filosofia de ordenação pela vontade superior. Como ministro de Deus, os monarcas tinham poder absoluto, inclusive sobre as atividades econômicas, que deviam ser ordenadas sob o melhor interesse do erário público. Mas Smith, ao sistematizar a tese de que a busca, imediata, do interesse individual converge, mediatamente, ao interesse geral, de forma que à riqueza das nações dever-se-ia legar
o mercado à espontaneidade das relações de troca, autonomizou a agência econômica.

A agência ética, por sua vez, encontrou seu grande teórico em Kant (2003, p. 109), ao asseverar que o ser racional é apto à representação da razão pela vontade pura e à atuação em conformidade com a vontade pura, pelo arbítrio. A representação da razão e o arbítrio seriam elementares ao ser racional; a partir daí, o direito justifica-se no necessário para que o arbítrio de um não prejudique o de outrem. Ou seja, não ao Estado caberia impor a moral ao homem; como ser racional, a ele se deveria assegurar o exercício da razão e do arbítrio, quando seria essencialmente livre.

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Caso coubesse ao Estado a imposição de uma moral ao ser racional, estaria ele a obstar o que lhe há de mais relevante: a racionalidade. Desprovido do exercício da vontade pura e do arbítrio, o homem não se diferenciaria, substancialmente, do animal, posto que seria movido pelos imperativos das necessidades e imediatismos dos interesses. O homem apenas seria...

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