Liberdade de expressão e direito à imagem: critérios para a ponderação

AutorChiara Spadaccini de Teffé
Páginas79-111
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITO À
IMAGEM: CRITÉRIOS PARA A PONDERAÇÃO
Chiara Spadaccini de Teffé
Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Atualmente, é professora de Direito Civil e de Direito e Tecnologia na Facul-
dade de Direito do IBMEC. Leciona em cursos de pós-graduação do CEPED-UERJ, na
Pós-graduação da PUC-Rio, na Pós-graduação do Instituto New Law e na Pós-gradu-
ação da EBRADI. É também professora da Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro (EMERJ) e do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio). Membro
da ComissãodeProteção de Dadose Privacidade daOABRJ. Membro do conselho
executivo da revista eletrônicacivilistica.com. Membro do Fórum permanente de mídia
e liberdade de expressão da EMERJ. Foi professora de Direito Civil na UFRJ e pesqui-
sadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio). Associada ao Instituto
Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada e consultora em
proteção de dados pessoais.
1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITO À IMAGEM: COMO CONCILIAR OS
INTERESSES EM JOGO?
Rio de Janeiro, Arcos da Lapa, 2007. Ali era gravada cena da novela Paraíso Tro-
pical em que determinada personagem despencava dos Arcos. A cena foi f‌ilmada à
luz do dia, no centro da cidade, sem conteúdo sexual ou nudez. Involuntariamente,
porém, os seios da intérprete de Telma (a atriz Isis Valverde) f‌icaram à mostra e um
paparazzo conseguiu ângulo em que era possível registrá-los. Em abril daquele ano,
o click dessa cena foi publicado na revista e no endereço eletrônico da Playboy sem
autorização da retratada. Foi inserida, inclusive, a seguinte legenda: “Isis Valverde,
no Rio, dá adeusinho e deixa escapar o cartão de boas-vindas”, que nada tinha a ver
com a situação em si.
No caso narrado, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que, apesar de se tratar
de pessoa famosa e de a fotograf‌ia ter sido tirada em local público, a forma como a
atriz foi exposta — tendo-se em conta o veículo da publicação, o contexto utilizado
na matéria e o viés econômico — foi abusiva e excedeu profundamente os limites
impostos pela boa-fé e os bons costumes. Segundo o relator, mesmo nas situações
em que houver alguma forma de mitigação da tutela do direito à imagem1, não será
possível tolerar abusos, estando as liberdades de expressão e comunicação limitadas
à condicionante ética do respeito ao próximo e aos direitos da personalidade.2
1. “Em relação especif‌icamente à imagem, há situações em que realmente se verif‌ica alguma forma de mitigação
da tutela desse direito. Em princípio, tem-se como presumido o consentimento das publicações voltadas
ao interesse geral (f‌ins didáticos, científ‌icos, desportivos) que retratem pessoas famosas ou que exerçam
alguma atividade pública; ou, ainda, retiradas em local público.” (STJ. Quarta Turma. REsp 1.594.865 – RJ.
Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DJe: 18/08/2017).
2. STJ. Quarta Turma. REsp 1.594.865-RJ. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DJe: 18/08/2017.
CHIARA SPADACCINI DE TEFFÉ
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Dezembro de 1999, Revista Veja. Com o título O Doutor Milhão, foi publicada
na revista matéria em que se tratou das conclusões do relatório f‌inal da chamada CPI
do Judiciário, que investigou determinado desembargador em sua atuação no âmbito
do Poder Judiciário do Distrito Federal. Segundo a revista, o magistrado foi citado na
CPI como responsável por diversas irregularidades no exercício de sua função. Ha-
veria indícios dos crimes de abuso de poder e prevaricação, além de improbidade
administrativa. A matéria adotou tom bastante crítico e, por vezes, sarcástico, mas
abordou tema de interesse público e repercussão social. Diante da publicação, o de-
sembargador ajuizou ação indenizatória em face da editora Abril, alegando ofensa à
sua honra e imagem em razão do uso de sua foto sem autorização.
Ao julgar o caso, o Ministro Raul Araújo3 entendeu que não havia ali dano inde-
nizável. Af‌irmou que, em se tratando de pessoa ocupante de cargo público, de notória
importância social, o âmbito de reconhecimento do dano à imagem e sua extensão
f‌icariam mais restritos, especialmente quando utilizada fotograf‌ia da pessoa para
ilustrar matéria jornalística e sem invasão de sua vida privada. Segundo o relator, a
utilização de fotograf‌ia do magistrado adequadamente trajado, em seu ambiente de
trabalho, serviu apenas para ilustrar a matéria jornalística, não constituindo viola-
ção ao direito de preservação de sua imagem ou de sua vida íntima. Destacou que,
em princípio, não caracterizaria hipótese de responsabilidade civil a publicação de
matéria jornalística que narrasse fatos verídicos ou verossímeis, ainda que eivados
de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, sobretudo quando se tratasse de f‌igura
pública que exercesse atividades tipicamente estatais e a notícia se referisse a fatos de
interesse geral relacionados à atividade pública desenvolvida pela pessoa em questão.
Em casos assim, a liberdade de expressão seria prevalente e afastaria o intuito doloso.
Determinadas situações ensejam a ponderação dos direitos fundamentais à liber-
dade de expressão e à imagem, ambos componentes da dignidade da pessoa humana,
em razão da impossibilidade de serem adequadamente decididas por meio de meras
subsunções, tendo em vista a existência de normas de mesma hierarquia indicando
soluções diversas. A título de exemplo, vale recordar casos como: a publicação de
biograf‌ias não autorizadas4, reportagens jornalísticas que mencionam pessoas ou
3. STJ. Quarta Turma. REsp 801.109-DF. Rel. Min. Raul Araújo. DJe: 12/03/2013.
4. “Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADI) 4815 e declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biograf‌ias. Seguindo
o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação conforme a Constituição da República
aos artigos 20 e 21 do Código Civil, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de expressão
da atividade intelectual, artística, científ‌ica e de comunicação, independentemente de censura ou licença
de pessoa biografada, relativamente a obras biográf‌icas literárias ou audiovisuais (ou de seus familiares, em
caso de pessoas falecidas). Na ADI 4815, a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) sustentava
que os artigos 20 e 21 do Código Civil conteriam regras incompatíveis com a liberdade de expressão e de
informação. O tema foi objeto de audiência pública convocada pela relatora em novembro de 2013 (...).”
Disponível em: Acesso
em: 19.10.19.
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LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITO À IMAGEM: CRITÉRIOS PARA A PONDERAÇÃO
acontecimentos de relevância, documentários sobre crimes históricos5 e vídeos de
humor que exploram, por exemplo, questões políticas ou tradições religiosas. A
ponderação produzirá a norma concreta que vai reger a hipótese, a partir de uma
síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre o conjunto de fatos.
Cada elemento deverá ser considerado na medida de sua importância, complexidade
e pertinência para o caso concreto.6
De um lado, tem-se um conjunto de liberdades essenciais ao ser humano que
tutela a liberdade de externar ideias, juízos de valor e as mais variadas manifestações
do pensamento, protegendo a informação e as atividades jornalísticas e de imprensa.7
A liberdade de expressão englobaria tanto interesses individuais – possibilitando
a expressão de opiniões, pensamentos e escolhas existenciais, além de servir de
instrumento de autodef‌inição e autodeterminação individual – quanto interesses
sociais, auxiliando na obtenção da verdade e na promoção da democracia. Af‌irma-se
que a referida liberdade faria parte dos direitos comunicativos: conjunto de direitos
relativos a quaisquer formas de expressão ou recebimento de informações8. Essa
categoria teria como f‌inalidade fortalecer e garantir em nível global o acesso de todas
as pessoas aos meios de comunicação e de expressão existentes.
5. Em 2008, o programa de televisão “Linha Direta – Justiça”, da Rede Globo, exibiu um documentário tratando
do homicídio de Aída Curi, ocorrido em 1958. Os familiares da vítima propuseram ação de indenização
por danos morais, alegando que a exibição do documentário os fazia reviver dores do passado. Pleitearam,
adicionalmente, indenização por danos materiais e à imagem, em razão da exploração da imagem da vítima
com objetivo econômico. No STJ, os familiares de Aída alegaram o direito ao esquecimento da tragédia
pela qual passaram há mais de cinquenta anos. Esse direito teria sido violado pela Rede Globo por meio
da exibição de documentário não autorizado pelos familiares sobre o crime. No julgamento, em maio de
2013, a Quarta Turma do STJ negou provimento aos pedidos dos familiares de Aída. Sustentou-se que a
reportagem fora ao ar cinquenta anos depois da morte de Aída, sendo, logo, incapaz de causar abalo moral
apto a gerar responsabilidade civil. Mencionou-se, ainda, a liberdade de imprensa como fundamento para
o indeferimento dos pedidos. (REsp 1.335.153 – RJ). O caso também foi analisado pelo Supremo Tribunal
Federal no RE 1.010.606. “O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 786 da repercussão geral, negou
provimento ao recurso extraordinário e indeferiu o pedido de reparação de danos formulado contra a re-
corrida, nos termos do voto do Relator, vencidos parcialmente os Ministros Nunes Marques, Edson Fachin
e Gilmar Mendes. Em seguida, por maioria, foi f‌ixada a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição
a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do
tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comuni-
cação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e
de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente
os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas
e específ‌icas previsões legais nos âmbitos penal e cível”, vencidos o Ministro Edson Fachin e, em parte, o
Ministro Marco Aurélio. Af‌irmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Presidência do Ministro Luiz Fux.
Plenário, 11.02.2021 (Sessão realizada por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).”
6. Cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 373-375.
7. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de
Ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 235, jan./mar. 2004.
8. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos comunicativos como direitos humanos: abrangência, limites,
acesso à internet e direito ao esquecimento. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 104, n. 960, p. 249-267, out.
2015.

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