Liberdade de expressão e tecnologia

AutorAnderson Schreiber
Páginas1-27
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E TECNOLOGIA
Anderson Schreiber
Professor Titular de Direito Civil da UERJ. Professor da Fundação Getúlio Vargas – FGV.
Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito e Mídia. Procurador do Estado do Rio
de Janeiro. Advogado.
1. A AMBÍGUA RELAÇÃO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E TECNOLOGIA
A sucessão de avanços tecnológicos ligados à internet, às redes sociais, aos smar-
tphones e à cultura digital não resultou apenas na abertura de espaços inteiramente
novos para o intercâmbio de informações e ideias, mas também em uma alteração na
própria forma de se comunicar. Em todo o mundo, especialistas registram, há tem-
pos, o crescimento continuado de um “movimento internacional de jovens ávidos para
experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias
clássicas nos propõe.”1 Trata-se de uma alteração profunda de mentalidade e de hábi-
tos, que exprime um sentimento de insuf‌iciência em relação não apenas ao conteúdo,
mas à própria estrutura “unilateral” dos meios tradicionais de comunicação de massa,
preferindo-se meios que permitam aos indivíduos participar ativamente não apenas da
seleção, mas da própria construção e difusão das informações que recebem.2
Essa mudança de papel do público – que deixa de ser mero destinatário para se
transformar, agora, em uma espécie de coautor do discurso comunicativo – assume,
na história da comunicação, tom genuinamente “revolucionário”. Até poucos anos
atrás, essa revolução era vista principalmente sob o prisma positivo: o estabelecimento
de canais de comunicação autênticos e diretos entre pessoas situadas nas mais dife-
rentes regiões do globo prometia uma espécie de olimpo da liberdade de expressão, no
qual a interatividade permanente contribuiria para a livre circulação de ideias, para
o aumento dos níveis informacionais e, consequentemente, para a redução da intole-
rância e dos preconceitos, a partir do estímulo irresistível ao contato com “o outro”.3
1. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 11.
2. Sobre a estrutura “unilateral”, por vezes referida como “autoritária”, dos meios tradicionais de comunicação,
especialmente a televisão, ver RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà. Bari: Laterza, 2005, p. 125:
Alcune tecnologie hanno in sé una forza che spinge, per esempio, a rafforzare un potere. La stessa televisione
tradizionale resta, a mio avviso, una tecnologia sostanzialmente autoritaria: c’è chi parla, chi si esprime e chi
semplicemente assiste in modo passivo, senza altra possibilità di reazione che spegnere il televisore o passare
su un altro canale, dove, tuttavia, si ritrova nella stessa condizione di dipendenza. La tv può essere usata da un
leader democratico come da un dittatore, e la distinzione tra l’uno e l’altro è aff‌idata ai contenuti: ma resta il fatto
comune dell’intima essenza autoritaria della televisione tradizionale.”
3. Nessa direção, ver Pierre Lévy: “O ciberespaço, interconexão dos computadores do planeta, tende a tornar-se
a principal infraestrutura de produção, transação e gerenciamento econômicos. Será em breve o principal
equipamento coletivo internacional da memória, pensamento e comunicação. Em resumo, em algumas
dezenas de anos, o ciberespaço, suas comunidades virtuais, suas reservas de imagens, suas simulações inte-
rativas, sua irresistível proliferação de textos e de signos, será o mediador essencial da inteligência coletiva
da humanidade.” (Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 167)
ANDERSON SCHREIBER
2
Mais recentemente, contudo, o entusiasmo tem cedido espaço a algum ceticismo,
provocado pela intensif‌icação do chamado online hate speech e pela disseminação
de práticas lesivas, como o shaming4 e o cyberbullying,5 além de outros fenômenos
que exprimem uma espécie de “dark side” das redes sociais6 e sugerem que novos
ambientes comunicativos podem, em certas situações, estar servindo mais à frustra-
ção da liberdade de expressão que à sua consagração – e, pior, frequentemente em
prejuízo das minorias. A própria estrutura dos novos ambientes eletrônicos, erigida
quase sempre sobre a construção de “perf‌is” aos quais se atrelam “grupos” de “ami-
gos”, “seguidores” etc., ao mesmo tempo em que pode reforçar laços de identidade,
tem se revelado, não raro, como elemento que intensif‌ica o sectarismo e a exclusão
de outras visões de mundo.
Contribui também para esse cenário a estrutura limitada na qual se deve “en-
caixar” o discurso na internet – usualmente, com limites diminutos de caracteres ou
tempo de exposição –, que acabam incentivando um elevado grau de superf‌iciali-
dade nas manifestações na rede. Assim, usuários são estruturalmente estimulados a
permanecer em uma espécie de círculo de pares, onde o discurso acaba se dirigindo
mais à obtenção de “likes” e “curtidas”, que ao estabelecimento de um efetivo diálogo
sobre os temas tratados.7 As mensagens divulgadas em redes sociais, por exemplo,
acabam assumindo, muitas vezes, um caráter ensimesmado, quase publicitário, de
autoaf‌irmação da identidade criada pelo emissor, que as fazem soar tão pouco abertas
ao debate quanto “as mensagens iconoclásticas coladas nos vidros dos carros”.8
4. Em def‌inição básica, shaming consiste no “ato de criticar e chamar a atenção de alguém publicamente,
especialmente na internet” (def‌inição disponível em: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/in-
gles/shaming). Para um estudo mais aprofundado sobre o fenômeno do shaming, ver LAIDLAW, Emily B.
Online Shaming and the Right to Privacy. In: Laws 6, n. 1, 2017, pp. 2-3: “At its best, shaming can enforce rules
of civility in online communities. It can be a facilitative force for positive change. Indeed, shaming is entrenched
in our culture, particularly to address social wrongs seen as outside the reach of the law. Naming and shaming
is a core regulatory tool to address human rights abuses. Shame campaigns against corporations for violating a
perceived social or moral wrong is common, such as campaigns against sweat shops or concerning environmen-
tal standards. It is a common strategy to address regulation of internet-based companies, such as the campaign
against Facebook for its refusal to shut down a rape joke group or boycott of the internet registration authority
GoDaddy for supporting the Stop Online Privacy Act (SOPA) and the PROTECT IP Act (PIPA) or creation of fake
Facebook groups to publicly test the quality of Facebook’s application of its community standards. At its worst,
shaming is a brutal form of abuse, causing, among other things, social withdrawal, depression and anxiety.”
5. Seja consentido remeter a SCHREIBER, Anderson. Cyberbullying: Responsabilidade civil efeitos na família.
Disponível em: www.cartaforense.com.br: “Mas, af‌inal, o que é exatamente o cyberbullying? Trata-se da
prática de intimidação sistemática a alguém por meio da internet ou tecnologias relacionadas. O cyber-
bullying consiste, em suma, na utilização do espaço cibernético para intimidar e hostilizar uma pessoa de
modo continuado.”
6. CLARKE, Tom. Social Media: the new frontline in the f‌ight against hate speech. Disponível em: minorityrights.
org. Publicado em: 30.10.2013.
7. “Na busca da auto-identif‌icação bem sucedida, os indivíduos auto-manipuladores mantêm uma relação
bastante instrumental com seus interlocutores. Estes últimos só são admitidos para certif‌icar a existência
do manipulador – ou, mais exatamente, para permitir que os manipuladores façam seus ‘eus virtuais’ caírem
na realidade.” (JAURÉGUIBERRY, Francis. Hypermodernité et manipulation de soi. In: AUBER, Nicole (org.).
L’individu hypermoderne. Toulouse: Érès, 2004, pp. 155-168).
8. BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo – A Transformação das Pessoas em Mercadorias. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008, p. 138.

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