Liberdade de Expressao: Teorias, Fundamentos e Analise de Casos/Freedom of Expression: Theories, Foundations and Case Analysis.

Autorde Laurentiis, Lucas Catib
  1. INTRODUÇÃO

    A liberdade de expressão é um direito complexo. Ela traz em seu âmago as liberdades de manifestação do pensamento, imprensa, reunião e até mesmo a liberdade religiosa. A liberdade de expressão permeia e sustenta a sociedade democrática em todas as suas esferas. Como abordar um tema tão amplo e controverso? Para orientar essa discussão, apresentaremos aqui três teorias que justificam a proteção da liberdade de expressão, com a exposição de seus principais fundamentos e bases históricas. São elas as teorias da verdade, da autonomia individual e, enfim, a democrática.

    Nesse percurso, são exploradas as perspectivas de seus defensores, assim como os desafios enfrentados para sua aplicação. Analisadas essas teorias, serão tematizados dois julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América: o caso Whitney v. California, no qual o Justice Louis Brandeis defende de maneira quase idealista o direito à liberdade de expressão, e o caso New York Times Co. v. Sullivan, que toca o problema das fake news e sua relevância para o debate acerca da proteção da liberdade de expressão. Esses julgamentos foram selecionados tendo em vista a sua importância histórica e também as suas consequências teóricas e dogmáticas, que persistem até os dias atuais.

    Apresentados os casos, serão tecidos comentários sobre a aplicação das teorias em relação a problemas reais e a proteção conferida pela Suprema Corte à liberdade de expressão. Nesse ponto, foram selecionados dois julgados do Supremo Tribunal Federal brasileiro (ADI's 4.923 e 4.451), que enfocam o papel do Estado como garantidor do direito de manifestação do pensamento. Analisa-se, neste ponto, se há coesão entre essas decisões, procurando um critério geral que as oriente. Finalmente, será apresentada uma comparação entre o direito brasileiro e o americano no que diz respeito à amplitude da proteção e aos fundamentos teóricos e constitucionais da liberdade de expressão.

  2. TEORIAS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

    2.1 TEORIA DA VERDADE

    A liberdade de expressão é tão antiga quanto os direitos fundamentais, mas suas características e fundamentos são relativamente novos. Só no início do século XX essas questões foram amplamente debatidas e tomaram a feição atual. Antes disso, a regulação da liberdade de expressão era comum e a censura, largamente permitida, em especial quando se defendia os interesses governamentais. Prova disso foi a chamada Lei de espionagem (Espionage Act), promulgada em 1917, logo após os Estados Unidos entrarem na Primeira Guerra Mundial. Essa Lei sofreu diversas modificações, sendo que uma das principais ocorreu em 1918, com a aprovação do Ato de Sedição (Seditious Act). O propósito dessa legislação é conhecido: o objetivo da Lei de proibir críticas ao governo e sua participação na guerra. (1)

    A criminalização das críticas, como ocorreu com o chamado "seditious libel", significou uma grande repressão aos direitos fundamentais, e demonstrou que a Primeira Emenda, promulgada no ano de 1791, ainda não era amplamente aplicada em solo norteamericano. A partir da aprovação e aplicação da Lei de espionagem, foi criada uma imunidade do governo às críticas. O povo não tinha mais o direito de questionar e discordar do que era decidido por aqueles no comando do governo. Essa ideia e suas consequências hoje parecem inconcebíveis quando se pensa nos EUA, um país que possui como seu ideal a liberdade e participação do povo em sua governança.

    Fato é que, com a aprovação da Lei de espionagem, o governo norte-americano proibiu qualquer manifestação crítica a respeito da guerra ou do recrutamento, não mais importando se havia ou não a intenção de causar dano real aos governantes ou terceiros. Sob essa lógica, equiparou-se a tentativa de causar dano ao discurso e, com isso, proibiu-se a linguagem em si mesma, o que deixou evidente a necessidade de se estabelecer limites ao que o governo poderia fazer em nome do poder e interesse público. Nessa linha, em 1919, por ocasião do julgamento do caso Abrams v. United States, alguns aspectos paradigmáticos da liberdade de expressão foram delineados. Jacob Abrams, juntamente com outros quatro imigrantes russos, foram presos e condenados por violarem o Ato de Sedição de 1918. Seu crime foi distribuir pelas ruas de Nova Iorque panfletos que criticavam os EUA por enviarem tropas para a Rússia, além de incentivarem os trabalhadores da indústria de munições a fazer uma greve em protesto contra a campanha norte-americana na primeira guerra. Após a sua condenação em primeira instância, os réus apelaram, baseando sua defesa na primeira emenda, sob o argumento de que seu direito fundamental à liberdade de expressão havia sido desrespeitado. Alegaram que os atos por eles cometidos seriam irrelevantes, pois sua conduta estaria protegida pelo direito à liberdade de expressão. A própria Lei de sedição, diziam, deveria ser considerada completamente inconstitucional.

    Em última instância, sua tese foi negada. Com base nos julgamentos dos casos Schenck v. United States, (2) Baer v. United States, e Frohwerk v. United States, o juiz Oliver Wendell Holmes entendeu que a proximidade do dano poderia ser equiparada ao crime. A probabilidade de a conduta de Abrams causar dano aos interesses do Estado norteamericano e à campanha da guerra, foi a justificativa para a condenação dos acusados. Porém, tal decisão marcou a origem do famoso teste do perigo claro e iminente, muito mais protetivo à liberdade de expressão se comparado ao seu antecessor, o teste da "bad tendency" (3), que possibilitava grande cerceamento à liberdade de expressão. Observando a discricionariedade com que estavam aplicando o teste, Holmes logo o alterou, indicando que o perigo além de claro e iminente, deveria ser muito grave.

    Diferentemente do que foi decidido em Schenck, ao julgar o caso de Abrams, Holmes foi forçado a avaliar se a primeira emenda permitiria ou não a supressão da liberdade de expressão em um caso de afronta aos interesses do Governo. Não se falava mais, então, em punição de condutas influenciadas por palavras, mas da condenação de ideias e, quanto a esse ponto, a resposta da Suprema Corte foi inequívoca: a Constituição está baseada na igual relevância de todas as ideias, sejam elas contrárias ou favoráveis ao governo, o que exclui a possibilidade de criminalização do simples pensar.

    Para resolver tal conflito, Holmes propôs uma teoria para justificar a defesa da liberdade de expressão: a teoria da verdade. A ideia que Holmes propõe está baseada em um experimento social. Um livre mercado de ideias, tal qual imaginado e defendido por John Stuart Mill (2005) e John Milton (2019). Nessa situação de troca livre de ideias e visões de mundo, o valor de verdade de um enunciado deve ser aferido pelo resultado do confronto da ideia nele contida com as ideias que lhe são contrárias. A livre troca de ideias define, assim, o valor da verdade. Para que uma ideia tenha valor e impacto real, ela deve ser o resultado de reflexão coletiva, pois uma verdade autodeclarada nada mais será do que uma falsa verdade.

    Post (2000) analisou esse ponto e concluiu que, para essa teoria, a verdade política deve ser determinada pelos cidadãos que participam de uma democracia, por meio da defesa de suas crenças e ações. Não pelo governo ou pelo judiciário. É necessário, por isso, cuidado e discernimento para que não ocorra a censura de ideias minoritárias, pois, mesmo que não aceitas, essas ideias fazem parte do livre mercado e sua censura desvirtuaria o funcionamento do sistema como um todo. A liberdade de expressão e pensamento só existe, sob esse ponto de vista, quando houver a preservação da liberdade daqueles com quem concordamos e também daqueles de quem discordamos. Por isso mesmo, a limitação dessas liberdades, diz Holmes, só deve ocorrer em situações em que esteja comprovada uma ameaça imediata, situação em que a interferência na liberdade se mostra necessária para salvar o país ou o direito de terceiros. Mas existe a dificuldade de se estabelecer quando se verifica um perigo real. A simples intensão de causar dano (bad intention) seria suficiente para justificar a proibição? Isso não equivale a proibir ideias perigosas? Considerando essas questões, Holmes sustentou que havia uma contradição entre o teste do perigo concreto e sua nova teoria para a liberdade de expressão.

    Diante da possibilidade de o discurso ser censurado apenas por ter uma potencialidade de causar algum tipo de dano, Holmes percebeu que seria necessária uma maior limitação da regulação estatal à liberdade de expressão. Para ele, mesmo quando verificada uma tentativa da prática de um crime, a punibilidade deveria ser relacionada a situações extremas, não meras perturbações. A defesa de atos criminosos está amparada, portanto, pela liberdade de expressão, desde que o defensor desses atos não incite diretamente a prática dessa conduta. O pensamento de Holmes era complexo e, em alguns pontos, parece até mesmo ser paradoxal. Suas decisões indicam que, a seu ver, além de tentar tornar possível o livre mercado de ideias, o judiciário deveria ter uma preocupação com a proteção dos interesses do Estado, motivo pelo qual, ainda que de forma limitada, ele considerava necessário que o Estado tivesse poder para regular o discurso. Seu pressuposto geral era que o contraste de ideias tem o potencial de revelar a verdade. E todos querem conhecer a verdade, pois ela revela como o mundo funciona. Apesar de ser uma meta válida, ao se especificar quais são as ideias relevantes para definir essa compreensão, muitos pontos de vista são deixados de lado, ocorrendo aqui uma marginalização de discursos, como aqueles que não têm relevância política, ou que assim ainda não tenham sido reconhecidos.

    A teoria da verdade abre, portanto, uma brecha, deixando vulneráveis à regulação estatal muitas formas de expressão. Há, como se observa, um juízo de valor sobre quais ideias merecem mais proteção, não se deixando claro quem irá realizar...

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